quinta-feira, 23 de julho de 2009

Série Crônicas de uma cidade # 1

João Braga acorda renovado. Hoje parece um recomeço cheio de possibilidades promissoras pra ele. O dia é 23/ 07/ 2009, e são 6:25 a.m, em Belo Horizonte. Ele se levanta e faz a barba que, cá entre nós, já estava ficando grande o suficiente para qualquer um notar o desleixo com o qual João havia se tratado nos últimos meses. Ele toma um banho frio, bem frio. É pra deixá-lo atento, ligado, bastante esperto. João espera muito do dia de hoje e nada pode dar errado. Ele coloca o seu melhor terno e, finalmente, sai de casa, precisamente às 6:56 a.m.

Enquanto João caminha até seu ponto de ônibus, aproveito pra contar a história dele, que definitivamente não começa com ele acordando no dia 23 de julho e muito menos no ano de 2009. É melhor que a história dele comece pelo dia 11/04/1989, às 16:11 p.m. E começa com seu coração batendo forte, muito forte, logo após ter ouvido "Deu positivo...tô grávida". Quem disse isso foi Sibele Moreira, que era sua namorada ha 2 meses. O caso deles é engraçado: diferentemente de outros casais, quem se aproximou e se insinuou primeiro fora Sibele. João resolveu ver no que aquilo ia dar e começaram um relacionamento. Depois da gravidez, os Moreira não deram escolha a João senão assumir a relação perante a Deus e aos homens, consagrando essa união por meio do sagrado matrimônio. E assim foi. Se casaram, no dia 08/10/1989. Mas voltemos ao presente.

João já chegou em seu ponto agora, que não tinha muita gente assentada, a não ser por um senhor de idade, lendo um jornal. São exatamente 7:21 a.m quando algo fantástico começa a acontecer, bem na frente de João. O senhor começa a cair em prantos, com o jornal aberto. João não consegue tirar os olhos daquela cena curiosíssima. Ele não sabe a razão do choro já que não consegue ver o rosto do senhor por detrás do jornal. João fita atentamente a cena quando o senhor, notando João, finalmente abaixa o jornal e, com uma expressão que esboçava uma felicidade jovial, lhe diz: "A vida sempre supreende a gente, né? A gente num pode é desistir, nunca. Nem um velho como eu...." João sente empatia imediata por aquele senhor e pelas palavras inexperadas. Ele vai responder quando nota que seu ônibus acabara de chegar. Ele precisa ir, e acaba não dizendo nada. Mas sua mente não abandona a cena: "O que aquele senhor poderia ter visto em um jornal que lhe trouxe tanta alegria? Será que ele descobriu ser o novo ganhador da loteria? Ou por terem descoberto a cura para alguma doença? Ou ficou muito aliviado com alguma notícia boa no jornal? Realmente, hoje em dia só se fala em tragédia nos jornais...."

Enquanto João pensa sobre o que viu e viaja de ônibus, voltemos à sua história. Sibele e João, tiveram sua filha, a pequena Anna Moreiro Braga, no dia 15/12/1989. Foi um grande dia na vida de João. De lá pra cá, todos os outros dias foram recheados de muito trabalho e de muitas reclamações, primeiro da mulher, chamando-o de relapso e, mais tarde, da filha, que havia aprendido a reclamar desde cedo com a mãe. João arrumara um emprego na agência de seu sogro, Eduardo Moreira. Eduardo, desde que conheceu nosso protagonista, sempre gostara dele. Eduardo, inclusive, por simpatia, insistia na presença de João nos jantares de família, pois queria se aproximar dele, tornar-se amigo. Quando a notícia da gravidez veio, ela soou como uma garantia aos ouvidos de Eduardo de que a amizade seria eterna. Tanto que ele tratou de dar um ótimo cargo a João, em sua agência de publicidade. João era um homem bem casado, com uma belíssima filha, um sogro simpático e um ótimo emprego. Voltemos ao presente dele, já que ele acaba de chegar na mesma agência que acabamos de citar, a de seu sogro Moreira.

João observa o grande sagão decorado em mármore daquele edifício. Fazia tempos que ele não visitava o lugar e olhá-lo agora o fazia parecer mais bonito do que ele jamais se lembrava. Ele pega o elevador, até o oitavo andar, e entra em seu tão conhecido ambiente de trabalho. Alguns de seus colegas notam que ele chegou e começam a cochichar. João começa a se sentir ansioso com a situação e seu coração começa a bater mais rápido. São exatamente 8:03 a.m quando João percebe que sua antiga mesa fora ocupada por alguém. Um outro funcionário, do qual ele não se lembra de jamais ter conhecido. Seu coração, agora aos pulos, tenta se acalmar enquanto ele pede à secretária de Eduardo Moreira um horário rápido para uma breve conversa. João se assenta no sofá da sala de seu chefe, e tenta se acalmar, enquanto seu relógio de pulso acaba de marcar 08:30 a.m. Ele tenta se convencer de que não está tudo perdido.

Enquanto João espera para falar com seu chefe, voltemos ao seu passado, que já se aproxima de seu presente. João vivia ouvindo de sua esposa que ele não lhe dava atenção, não lhe dava carinho, não prestava atenção a sua filha. Ele tentava mudar, mas a quantidade de trabalho era enorme e o chefe, apesar de adorá-lo, muito exigente e rigoroso. Tudo se manteve assim até o dia 02/04/2009, em que sua mulher, aos gritos, exigia o divórcio e saía de casa com malas feitas, levando Anna consigo. João se deprimiu. Passou os 3 meses seguintes lidando com o choque, com a tristeza e com a culpa pela situação em que estava. Ele nunca imaginara que tudo acabaria em divórcio. Sua depressão foi tamanha que João não ia mais ao trabalho: olhar para Eduardo apenas lhe apertava mais o coração. Mas, passados 3 meses, João, finalmente, no dia de hoje, resolvera recomeçar sua vida, esperando que Eduardo, que sempre lhe foi tão generoso, daria seu emprego de volta. Mas João só ficaria tranquilo depois de conversar com Eduardo e reconquistar sua antiga posição.

A atendente avisa a João que tem permissão para entrar. João entra na sala do chefe, tendo o cuidado de fechar a porta atrás dele. Por um momento, aliás, por exatamente 5 segundos, João e Eduardo se entreolham, como que surpresos um com a presença do outro. O coração de João está disparado. Ele toma ar para começar a conversa, quando é interrompido: "Você veio buscar as suas coisas? Eu separei tudo aqui pra você, e guardei na minha sala." João então sente seu mundo desabando, novamente. Ele havia perdido o emprego e nem sabia disso. Ele devia ter esperado por isso. Aliás, suspeita até que uma carta sobre o assunto lhe fora enviada, mas ele estava deprimido demais pra se importar com qualquer correspondência. Ele então resolve esconder o fato vergonhoso de ter se aprontado daquela forma por nada. Envergonhado, ele pega a caixa das mãos de seu ex-chefe e ex-sogro e se vai, sem conseguir dizer uma palavra sequer.

No caminho, passa na lanchonete da empresa, e compra um bolinho de chocolate com um recheio delicioso de trufa, que ele sempre comia após o almoço. Seria o último daqueles que ele comeria. São exatamente 8: 43 a.m quando João fita sua tão amada sobremesa, envolta em um saquinho de plástico, que sempre fazia um barulho agradável aos ouvidos ao ser aberto. Estava longe do horário de almoçar mas aquilo serviria como um ritual de despedida.

Exatamente as 8: 47 a.m, quando João olhava para o bolinho em suas mãos, após ter saído finalmente do edifício em que trabalhara por tanto tempo e dado 8 passos na calçada, sua vida mudou completamente. Ele fora roubado. Um trombadinha passou, correndo muito rápido, viu o bolinho nas mãos do distraído João e não pensou duas vezes em tomá-lo de suas mãos. A destreza do rapaz foi tanta que João precisou de exatos 3 segundos pra se dar conta de que seu bolinho fora tirado dele e se virar para olhar quem tinha sido. O menino, que já estava embalado, corria rápido e logo sairia da vista de João. Nesse momento, nosso protagosnista foi tomado por uma fúria colossal, algo que tomou seu corpo completamente, alterou todos os seus sentidos, mudou tudo. Algo que João nunca havia sentido estava emergindo bem ali, gritando pra sair. Ele dispara atrás do garoto. Pessoas são empurradas e jogadas longe quando João, que não sente dificuldade nenhuma em tirá-las do seu caminho, passa enfurecido. O garoto olha para trás e se assusta: o dono o estava perseguindo para reaver o doce roubado. O menino aumenta seu rítmo, embora já estivesse cansado de correr. João, por outro lado, sentia como se estivesse assentado na beira de uma piscina de clube, e que poderia correr por dias se fosse necessário. Para ajudar na corrida, ele se livrou de sua gravata e jogou sua pasta, cheia de documentos, no chão.

O garoto, tentando evitar que a corrida continuasse, resolve entrar para uma favela próxima, exatamente as 9: 25 a.m, que não era a que ele morava, mas que sem dúvidas seria o bastante para assustar seu perseguidor e fazê-lo dar meia volta. O garoto não poderia estar mais enganado. Os morros da favela o cansaram mais e João tinha menos obstáculos para perseguí-lo agora que não estava em uma avenida movimentada. O garoto está apavorado: ele entrou em um território que não conhece e um homem maluco, com nada além de ódio no rosto, o seguia incansávelmente, não importasse qual devio ele tomasse, qual manobra evasiva ele adotasse. O homem agia como se conhecesse aquela favela melhor do que ele ou como se um radar estivesse grudado em suas costas. Por fim, o garoto deixa cair o bolinho e continua a corrida, as 9: 45 a.m.

João encontra seu bolinho no chão, ainda protegido pelo plástico. Ele para imediatamente. Se aproxima e cai de joelhos olhando o bolinho enquanto recupera seu fôlego. Todo o cansaço agora se faz notar. Seus músculos estão queimando, sua cabeça está tonta, e seu coração, disparado. E foi nesse momento que João começou a chorar, e chorar muito. Alguém que visse a cena veria um homem de terno, completamente suado, com seus 40 anos, ajoelhado de frente para um bolo de chocolate, no chão, aos prantos, no meio de uma favela. Mas veria que João não chora de tristeza, nem de desespero. João chora de alegria, uma forte e sincera alegria. Ele entendeu finalmente qual havia sido o caminho que trilhara até aquele dia, e entendeu também que ele fora completamente transformado naquele momento. Pela primeira vez em sua existência, João havia lutado com todas as forças contra um dos vários golpes inesperados da vida. Ele aceitou namorar Sibele por parecer o mais fácil e certo a fazer; aceitou casar-se pelo mesmo motivo e aceitou o emprego na agência pelo mesmo motivo. Aceitara tristemente o pedido de divórcio, sem saber como protestar ou lutar contra a decisão de uma mulher com o temperamento tão forte como Sibele. Aceitara, inclusive, perder o emprego sem lutar por ele, considerando ser uma causa perdida. João, pela primeira vez na vida, não se sentiu uma causa perdida. Ele descobriu que podia lutar até o final para conseguir o que quisesse, mesmo indo contra todas as possibilidades. Ele entendeu as palavras do senhor no ponto de ônibus. Ele jamais desistiria outra vez, a partir daquele dia. E é assim que acaba uma história de João. Uma história de fracassos e de mágoas. Mas também é assim, exatamente às 9: 47 a.m, do dia 23/07/2009, que outra história, cheia de decisões arriscadas, de luta, de conflitos, de decepções, mas também das mais grandiosas alegrias, começa. E é aqui que abandonamos João. Ele já não precisa mais de nós.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Filosofia de viagem


Olá!



Acho que é mais do que comprovada a existência e, inclusive, a recorrência de um certo fenômeno: a filosofia de viagem.

Tratam-se daqueles momentos em que você, seja dentro de um carro ou de um ônibus, começa a pensar na vida, nas questões essenciais, nos problemas, nas soluções e, quem sabe, uma epifania possa surgir.

O relato de hoje não é, apesar da introdução, uma epifania advinda de uma filosofia de viagem. É, pelo contrário, o relato de uma linha de raciocínio que foi jogada em uma direção completamente difente, dadas as circunstâncias.

São 23: 30 p.m.

Um rapaz dirige seu carro calmamente pensando sobre a vida. Ele está no começo do percursso. Sua mente vai divagando entre trabalhos a serem entregues, coisas a serem ditas a amigos, problemas a serem resolvidos, quando - a uma hora dessas - um homem de idade avançada lhe pede dinheiro no sinal. Ele tem um aspecto fantasmagórico.


Isso lhe faz pensar sobre aquelas pessoas que colocam saquinhos - que sempre têm mensagens religiosas impressas - com poucas balas em cima dos retrovisores dos carros nos sinais vermelhos. Primeira dúvida: quem imprimiu essas mensagens para eles? Segunda dúvida: Se eles precisam ganhar a vida nos sinais, devem ter pouquíssimas condições econômicas. Será que eles, portanto, fizeram algum tipo de acordo com seja-lá-quem-for que escreveu aquela mensagem religiosa? Terceira dúvida: No caso de um acordo, os lucros são divididos? Quarta dúvida: É realmente possível viver vendendo balas no sinal? Quinta dúvida: Quem são essas pessoas e como elas gastam o dinheiro que arrecadam? Serão pais de família, por exemplo? Mas essa divagação, como vocês verão, se perderá pelo que vem a seguir.


De repente, algo interrompe os pensamentos do rapaz. No sinal seguinte, uma mulher muito bonita, de cabelos loiros, pele lisa, lábios, olhos e rosto muito bem feitos, parando o carro ao lado do dele, começa a olhá-lo fixamente. Ela, no entanto, não olha como uma mulher interessada em alguém. Não sorri, não mexe no cabelo, porem não desvia o olhar. O rapaz começa a pensar que ela viu algo de muito errado nele, talvez uma sujeira em seu rosto. Mas ela não o olha como se algo de errado tivesse sido encontrado: ela apenas o olha, fixamente, talvez como apenas um fantasma.

Pelo vidro do banco de trás do carro dessa mulher, o rapaz nota que um taxi também está parado no sinal. Seus dois passageiros, um careca e uma mulher de cabelos longos, muito pretos, discutem um com o outro, vociferando, quase se agredindo.


Dúvidas: O que aquela mulher tanto olhava? Será que, ao olhar o rapaz, ela se lembrou, quem sabe, de um ex namorado? Parece não ter tido um final feliz, esse relacionamento. Vai ver, terminou em assassinato. Resta saber de quem: seria a mulher uma assassina ou realmente um fantasma? Outra dúvida: qual seria o motivo da discussão do casal do taxi? Pra brigarem desse jeito dentro de um taxi, a coisa devia mesmo estar séria. Será que a mulher cometeu adultério? Será que eles retornavam de um jantar frustrado e cheios de gafes terríveis com as famílias de ambos? Será que a briga continuaria ao descerem do taxi? Até onde chegar essa discussão tão agressiva?


O rapaz segue. Já está na metade do percusso. Ele se assusta: um carro, mais amassado que uma lata de refrigerante depois de ser pisoteada, bloqueia duas pistas de seu caminho. Algumas pessoas estão em volta do acidente e, para sua surpresa, ele consegue ver nitidamente que três delas conversam aos risos.


Dúvida: Como alguém pode rir em uma situação dessas? Estariam essas pessoas realmente envolvidas com o acidente? Não pareciam, pelos trajes e pelo horário, transeuntes curiosos. Seriam essas pessoas paretes do acidentado? Houve alguma vítima fatal? Seriam eles, portanto, inimigos do recém falecido no acidente? A ponto de rirem enquanto fitam a destruição do veículo de seu inimigo?


O rapaz continua. Já está próximo de casa. Sua atenção é tomada por um homem fazendo cooper na frente de um cemitério.


Dúvida: Por que alguém, às 23: 55, faria exercícios fora de casa e, pior, passando na frente de um cemitério? Seria esse homem, na verdade, o fantasma do falecido do acidente de outrora que, com pressa para ir ao outro mundo, o fazia correndo? Seria ele um fantasmagórigo amigo da loira macabra que, de tanto olhar, parecia nem piscar? Seriam os dois um sinal de mau presságio?


O rapaz segue, agora temendo se juntar aos outros dois. Já está quase em casa. Novamente, algo toma sua atenção: uma mulher de idade avançada, encobrida por roupas pretas - possivelmente um cobertor - esperava, sozinha, no ponto de ônibus. Ela foi vista de relance mas, dadas as circustâncias, fez a mente do rapaz novamente degavar.


Dúvida: Quem abriu as portas do mundo dos mortos?


Finalmente, o rapaz chega ao seu destino. Chega e se pergunta: "Será que algum dia vou descobrir a resposta de alguma das perguntas que me fiz hoje? Possivelmente eu tenha que levar essas dúvidas para o túmulo."


Muito apropriado. Dessa forma, quem sabe, você, rapaz, poderá perguntar pessoalmente a cada uma das almas penadas - a loira, o corredor e a senhora (e talvez o primeiro senhor) - o que resolveram fazer tão tarde (ou talvez tão cedo, no horário dos mortos) no meio da rua.

Existe a remota possibilidade de não serem almas penadas. Mas ela é prontamente afastada pelo rapaz, que parece se divertir imaginando que realmente pôde, por uma noite, ver gente morta.