segunda-feira, 1 de julho de 2013

Luto e ficção

Perdi um familiar muito querido há dois meses. Desde então, fui tomado por uma melancolia enorme. Enquanto o Brasil pegava fogo com gritos e protestos, não me vi compelido a participar de nada. Absolutamente nada. Até porque, sinceramente, eram manifestações de insatisfação muito genéricas e nenhuma me seduziu. Enquanto as pessoas saíam às ruas por qualquer motivo, muitas simplesmente querendo expressar um sentimento explosivo que eu não tenho, no momento, fiquei observando de longe.

Enquanto isso, ainda de luto, comecei a rever um desenho que conheci na minha adolescência. Não sabia a razão disso, só comecei a pensar naquele desenho e a revê-lo, mesmo com tanta coisa pra fazer. Eu fui revendo episódio por episódio, sentindo emoções que não tinha experimentado nas primeiras vezes em que ví. O desenho era outro agora que sou outro. 

Eu não entendia a razão de tanto impacto por rever aquela história. Foi um desenho que eu assisti com meu familiar falecido, isso eu sempre soube, mas algo mais estava acontecendo enquanto eu o assistia. Foi somente após o último episódio que me dei conta do que estava acontecendo.

O desenho é sobre um rapaz jovem, que cresceu em um ambiente inóspito. Seu pai abandonou a família. Sua mãe se entregou completamente ao álcool. Na escola, os professores não dão crédito a ele. O garoto possui uma agressividade muito grande em relação a tudo, como resposta. Ele encontra algum afeto por parte de uma menina que acaba virando sua namorada, mas somente dela.

Num geral, ninguém dá nenhum crédito a ele. Ninguém acredita que ele seja capaz de nada de bom. Um dia, ele encontra um garotinho jogando bola na rua e o avisa pra tomar cuidado. O menino, teimoso, continua e acaba jogando a bola no meio da rua movimentada e indo atrás para buscá-la. O protagonista se joga para salvar o garoto e morre atropelado. Mas sua morte foi uma surpresa até pro mundo espiritual: ninguém, nem Deus e a própria morte esperavam que ele desse a vida para salvar alguém. Então oferecem a ele a chance de reviver, já que não existe lugar pra ele nem entre os mortos. A fala do protagonista é a mais impressionante. Ele diz que não quer reviver, pois ninguém sentiria sua falta. Todos estariam melhor sem ele.

Ou seja, sua auto-estima era, com razão, muito baixa. Mesmo assim, ele decide tentar reviver principalmente depois de ver como sua mãe reagiu e se entristeceu. Sim, ela bebia, mas isso nada tinha a ver com o imenso amor que sentia pelo filho. Ele se comove, revive e depois disso, se torna um funcionário do mundo espiritual. Sua missão é encontrar demônios e caçá-los. Ou seja, esse protagonista, tão hostilizado pelo ambiente em que nasceu, fruto de uma família desestruturada, encontra uma maneira socialmente aceitável e produtiva para liberar sua agressividade. E, por meio dessa agressividade canalizada, ele recebe suas maiores conquistas e seu maior reconhecimento. Através de suas aventuras, faz amigos fiéis que o admiram e se tornam companheiros.

Em vários momentos, no entanto, esse protagonista se mostra tão temerário que sua coragem parece se apoiar ainda naquele sentimento inicial de que a sua vida tem pouco valor. Ele no início entrega - sem pensar duas vezes - a única chance que tinha de reviver para salvar sua namorada. Com sorte, a entrega não passava do último teste para reviver e assim o enredo prossegue. Em outro momento, ele deliberadamente se deixa matar por um inimigo poderoso para que a sua morte evoque a força de seus companheiros e isso os faça derrotar o vilão. Mais uma vez, para que o enredo continue, ele é novamente trazido de volta.

Foi somente depois do desenho que eu entendi o que estava acontecendo. Esse protagonista era o meu familiar. As histórias eram - afora os elementos fantásticos - iguais. Eu procurei respostas e sentido para o ocorrido nesse desenho. Vivi o luto através da arte, da fruição, do correr da história. E, através dela, percebi algo que não percebera anteriormente: que ambos protagonista e familiar carregavam, dentro de si, um sentimento de baixa estima. Que estava ali, há tempos, uma semente que poderia resultar em uma tragédia. 

Infelizmente, não estamos no mundo da ficção. Aqui, diferente de lá, não se pode entregar a própria vida três vezes e continuar vivo. Noto que, em todas, as mortes foram ocasionadas pelo próprio protagonista e não por um elemento externo. Mas eu gostaria de viver no mundo da ficção. Gostaria de tê-lo de volta, de vê-lo novamente, de poder chamá-lo de idiota e de poder reclamar dele. Gostaria de poder rir novamente com ele, de embarcar em mais uma aventura com ele e de torcer por ele em um torneio. E eu pude fazer tudo isso ao rever o desenho. E fiz. E, por alguns instantes, realmente acreditei que ele tivesse voltado.


sábado, 12 de fevereiro de 2011

A mulher perfeita

Parecia um dia comum naquela delegacia. Denuncias sendo feitas, documentos sendo apresentados, relatórios sendo redigidos. Policiais passando aqui e ali. Vítimas também. Telefones tocando, pessoas conversando, dedos digitando, impressoras antigas fazendo todos os tipos de barulho, etc. Um dia comum.
Alguém entra na delegacia e consegue a atenção de todos. É um homem. Ele grita algo tão alto que todos os outros sons parecem apenas ruídos perto de sua voz. E todas as pessoas se calam para ouví-lo.
Ele disse:
- Eu matei uma mulher! Acabei de fazer isso! Eu a enforquei!
Obviamente, isso seria chamativo em qualquer lugar. Mas, obviamente, sendo o lugar em que tal grito foi entoado uma delegacia, o silêncio e a atenção de todos sobre esse individuo foram redobrados, se é que isso era possível.
Ele continuou:
- Eu sou o culpado! Não tentarei fugir! Posso até dizer onde está o corpo! Podem me prender quando quiserem!!
Geralmente, a ação da polícia é ineficaz em praticamente todas as denúncias e queixas feitas ali. Mas, diante de uma denúncia feita por um indivíduo contra si mesmo, se entregando, os policiais agiram bem rápido. Correram em direção ao homem e o agarraram com força, como se houvesse nisso algo heróico, e como se ele tivesse manifestado qualquer intenção de fugir.
Minutos depois, o homem foi algemado e colocado de frente ao delegado para se explicar.
- Eu matei mesmo uma mulher. Ela se chama Juliete. Aconteceu em uma casa em construção. Não é muito longe daqui.
O delegado, surpreso ainda com toda a situação, decidindo se acredita ou não naquele homem, perguntou:
- Juliete? Isso lá é nome de gente? Você tá falando a verdade!? Se isso for algum tipo de brincadeira...
Seu tom era de ameaça. Todos estavam tensos. Dois policiais estavam na sala, ouvindo a conversa também.
- Não é mentira. Eu matei essa mulher. Eu fui obrigado a fazer isso.
O delegado agora estava indignado:
- Obrigado!? Ela por acaso pediu pra você fazer isso!? Que absurdo é esse?
O homem olhou diretamente para o delegado e respondeu:
- Eu tive que fazer isso. Eu vou me casar amanhã.
Até mesmo os policiais em volta não puderam evitar. Os queixos caíram e os olhos se arregalaram.
O delegado mandou que os dois saíssem. Ele respirou fundo e se lembrou do que tinha de fazer.
- Antes de mais nada, rapaz, me diga o seu nome completo.
- Gabriel Costa Neto. E essa é a minha carteira de identidade.
O delegado verificou. "Gabriel Costa Neto" era um homem de 26 anos. Sem nenhuma passagem anterior pela polícia. Residência fixa...aparentemente um cidadão comum. Não parecia o tipo que cometeria um crime tão bárbaro. Ele também colocou a cabeça no lugar: com tantos nomes estranhos surgindo atualmente, Juliete certamente não fora o mais estranho que ele já ouvira naquela delegacia.
O delegado continuou:
- Você não preferiria ligar para um advogado? Você não é obrigado a fornecer provas contra si mesmo, principalmente sem a presença de...
Ele foi interrompido pelo rapaz.
- Eu quero confessar tudo a você, Sr. delegado. O que vai acontecer comigo daqui em diante é critério seu.
O delegado ainda não sabia qual era a razão daquilo tudo, mas decidiu tomar garantias. Ele convocou os dois policiais que havia dispensado e, assim que entraram, pediu a Gabriel que ele fornecesse o endereço do local onde o corpo estava. Gabriel fez isso sem hesitar.
Os dois homens saíram da sala às pressas, enquanto o delegado continuou a conversa.
- Essa tal Juliete, qual é o nome completo dela?
- Apenas Juliete. Isso já basta, delegado. Vocês irão encontrar o corpo.
O delegado respirou fundo. O endereço onde o crime supostamente ocorreu não era tão próximo assim. Isso significava que o rapaz a sua frente precisou de dirigir por pelo menos uma hora para chegar àquela delegacia e se entregar. Ele precisava tomar cuidado, a situação toda era muito atípica.
- Você disse, Sr. Gabriel Neto, que iria se casar amanhã e que, portanto, foi obrigado a cometer o homicídio. Qual era a natureza do seu relacionamento com essa...Juliete? É com ela que você vai se casar ou...ela era uma...parceira extra-conjugal?
- Eu não vou me casar com a Juliete. Eu adoraria, mas eu não posso.
Essa resposta preocupou o delegado. O rapaz continuou.
- Eu vou me casar com uma garota que conheci na faculdade. Ela não tem nada a ver com a Juliete.
- Então era uma amante? Por acaso essa Juliete já era casada, Gabriel? Ou você não queria que ela se envolvesse com mais ninguém mesmo depois que você se casasse? É isso o que houve?
O rapaz parecia pálido. E trêmulo. Ele disse, em voz baixa:
- Eu não acredito que eu realmente consegui.
O delegado se indignou:
- Escute aqui...se eu ouvir você dizendo algo assim de novo, coloco você na cadeia e não escuto uma palavra sua até meus homens me avisarem o estado do corpo da vítima.
Gabriel se desculpou, mas ele agora parecia ainda emanar um ar de satisfação. Mas não um ar cruel, o que deixava tudo intrigante. De qualquer forma, pensou o delegado, ele já iria para a prisão mesmo que tudo isso não passasse de um devaneio vindo de um maluco. O delegado continuou a conversa:
- Então você e ela eram amantes?
- Não.
- Você e ela já se envolveram antes?
- Eu pensei que sim, Sr. delegado. Achei ter me envolvido com ela várias vezes. Mas eu estava enganado.
- Então você é um doente, Sr. Gabriel. Me desculpe por quebrar alguns procedimentos, regras e protocolos de conduta, mas eu estou farto de homens como você. Homens que acham que possuem uma mulher. Que acham que elas são seus objetos, suas possessões. E não permitem que elas os abandonem, que sigam com suas vidas...vocês precisam delas mesmo que seja à força, não é, seu covarde!? Se quiser continuar conversando comigo, vai ter que ouvir o que penso de você!!!
- Você pode dizer o que quiser, Sr. delegado. A verdade é que ela foi, para mim, a pessoa odiosa que você descreveu. Ela não me deixava seguir em frente, não me deixava esquecê-la...e certamente não me deixava abandoná-la.
O delegado estava furioso e confuso. Nada daquilo fazia sentido.
- Mas você não acabou de dizer que você e ela nunca se envolveram? Que história é essa agora? Ela era a possessiva? Era ela quem não deixava você seguir em frente e por isso você a matou!?
- Isso mesmo. Eu precisava fazer isso. Eu vou me casar amanhã.
- Você vai é pra cadeia, Gabriel.
O rapaz parecia não se importar com isso. O delegado recolocou o pensamento no lugar, e continuou:
- Então deixe-me ver se eu entendi...você estava apaixonado por essa mulher, essa Juliete, não estava?
- Sim. Muito. Passei a vida inteira gostando dela, Sr. delegado.
- E você precisou matá-la por que, exatamente? Se você gostava tanto dela e ela não te deixava ir, qual era o problema? Por acaso ela é alguma pessoa com quem você não podia se envolver? Uma prima? Irmã? Filha...?
O delegado estava incomodado com o possível curso dessa conversa.
- Não, Sr. delegado, ela não era da minha família. E eu passei a minha vida inteira apaixonado por ela, mas isso acabou quando eu conheci a minha futura esposa. Ou pelo menos eu fiz acabar. Hoje.
- Então...você acha que matando essa mulher você vai conseguir esquecê-la e se casar amanhã? Você perdeu o juízo, rapaz!?
- Ela não me deixaria casar, delegado. Não me deixaria viver uma vida normal, ter filhos com a minha futura esposa, cuidar dela, amá-la...nada disso. Ela já fez isso antes.
- Como? Por favor, explique.
- Sempre que eu me envolvia com alguma mulher, lá estava ela. Ela aparecia, me atraída, e atrapalhava tudo. Era ela quem eu buscava em todos os meus antigos relacionamentos. Mas hoje isso acaba.
- E vocês nunca se envolveram fisicamente, Sr. Gabriel? Essa tá difícil de engolir, com o perdão da palavra.
- Nunca. Antes isso me incomodava, mas não mais. Eu quero viver uma relação normal agora, com a minha futura mulher.
- Eu não acho que é assim que as coisas irão acontecer, Sr. Gabriel. Se você quer tanto se casar amanhã, por que cometeu um crime tão bárbaro e ainda se entregou desse jeito?
- Por que o Sr. é a lei, delegado. Eu precisava ouvir o que você tem a dizer. Eu preciso saber se o senhor concorda comigo ou não. Se o Sr. acha perdoável o que eu fiz.
O delegado agora tinha certeza de que estava conversando com um maluco. Ele se cansou daquilo e mandou levarem Gabriel para uma cela. Ele ficaria ali até a perícia voltar. E, após duas horas de espera, seus homens voltaram.
- Não tem corpo nenhum naquele endereço, Sr.
O delegado, furioso, se levantou e foi pessoalmente tirar satisfações com Gabriel. Por que se entregar depois de um assassinato e dar o endereço falso? Nada daquilo fazia sentido. Ele se dirigiu rapidamente à cela do rapaz e, apertando as grades com força, disse:
- Os homens não encontraram nada no endereço que você indicou, rapaz. Eu vou acabar com a sua vida se isso foi piada sua.
O rapaz parecia assustado.
- Então...não encontraram nada? Certeza absoluta!?
- Sim. Me explique agora o que está acontecendo.
- Então, Sr. delegado, acho que não vou me casar amanhã...acho que ela sobreviveu.
- Como é!?
- E acho também que você não me ouviu com a devida atenção, delegado. Você ainda não entendeu? É tão óbvio. Uma mulher que está em todos os nossos relacionamentos, mas com quem nunca conseguimos nos envolver. Uma mulher que não nos deixa seguir em frente e que certamente não pode morrer. Não facilmente. Eu já tentei fazer isso antes, não se lembra?
O delegado parecia confuso. Ele não entendia nada daquilo.
- Eu já tentei matá-la antes. O Sr. não se lembra?
- Eu...acho que não...
O delegado estava inseguro quanto a isso.
- Quem é essa mulher de quem eu falei, delegado?
O delegado resolveu deixar o teatro de lado e respondeu:
- Você não devia sair nunca mais dessa cela, Gabriel. Nós não devíamos.
Gabriel se calou.
- Você falhou novamente. E agora nós vamos nos casar. Tudo vai ser um inferno. Ela vai voltar e estragar tudo.
- Eu sei...
- Quantas vezes eu já repeti isso, Gabriel? Você precisa matá-la. Não existe prisão no mundo que o condenaria por isso! Mas não há perdão por você ter falhado dessa vez. Isso vai magoar muitas pessoas lá fora.
Gabriel agora apenas concordava melancolicamente com a cabeça.
O delegado continuou:
- Gabriel, quantas vezes eu preciso dizer? A Juliete não existe. Nunca existiu.
Gabriel continuou calado. O delegado, em um tom severo, prosseguiu:
- Ela é a mulher perfeita! Aquela que sabe sempre o que você está pensando, que gosta das mesmas coisas que você, que conhece até aquilo que você não sabe, que tem a mesma visão de mundo que você! Aquela que é a união de tudo o que você considera atraente fisicamente! A mesma que você procurou em todas as mulheres reais com quem já conviveu!
- Eu sei, delegado. Eu sempre acho que a encontrei em carne e osso. Sempre encontro o rosto dela por detrás de todos os rostos que conheço. Até descobrir que ela não estava ali, de fato. Até me decepcionar com os defeitos e as incompatibilidades de uma parceira real. Até perceber que não é com Juliete que estou, mas sim com uma farsante. E eu sei, delegado, que só a Juliete vai me fazer feliz. Eu preciso encontrá-la.
- Viu? Ela ainda não morreu. E é por isso que você devia ficar aí até apodrecer. Você vai continuar voltando aqui e falhando em matar esse fantasma. E vai continuar estragando todo e qualquer envolvimento amoroso que tiver por causa disso. E vai desperdiçar a vida inteira correndo atrás de um vulto. Agora vá, você está liberado.
Gabriel saiu, melancólico, andando pelo longo corredor da delegacia.
A música tocava alto, e ele estava de smoking.
Todos os convidados o olhavam.
Ele caminhou até o altar e aguardou.
Meia hora depois, olhou para sua noiva e, com uma simples palavra, concluiu a cerimônia:
"Sim".
Todos festejaram.
Mas Juliete o observada, de algum lugar. Ela sabia que nada daquilo iria durar.
E Gabriel também sabia que não era ela quem o estava beijando enquanto todos soltavam gritos de alegria.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Amém, maldito.

Ando com um sentimento inédito ultimamente.
Inédito no que se refere a sentir, por que já esse sentimento aparecendo em algumas outras poucas pessoas e sendo retratado aqui e ali.

É quando você se sente cansado e frustrado com a sua própria cultura. Cultura no sentido amplo do termo: estou cansado da formação e da estrutura da cultura ocidental.

Ela é confusa, cínica, hipócrita, contraditória. Vivemos no mundo do prazer imediato, do estímulo a euforia coletiva, do fomento ao consumo e, simultâneamente, no mundo da culpa, da humildade e da temperança.

Em outros contextos históricos, o ocidente passou fome e quase ficou para trás na corrida das civilizações. Agora, nunca tivemos tanto alimento disponível e tanta abundância. E, nesse mesmo agora, vivemos no mundo do regime, do transtorno alimentar, da bulimia. A televisão alterna entre anúncios de lanchonetes, super mercados, marcas de cerveja e restaurantes para anúncios protagonizados apenas por pessoas magras, muitas delas vendendo aparelhos de exercício físico. Mas esse é só um exemplo. Somos convocados a consumir produtos altamente calóricos mas também a vê-los como O INIMIGO. Precisamos e temos o desejo de comer, mas também somos pressionados a não fazê-lo, com medo da balança e da rejeição. Nasce aí uma das várias contradições angustiantes: como e mato meu desejo ou me controlo em nome do ideal de magreza, sabendo que o desejo voltará várias vezes ao dia pelo resto da minha vida? Antigamente, agulhas, barras de ferro e cordas eram bons instrumentos de tortura. Hoje em dia, basta comer uma barra de chocolate. Nosso sistema econômico, conclui-se, é movido pela angústia e pela falta. Ele não seria possível em uma sociedade de pessoas satisfeitas.

E essa não é a minha questão principal. O fato da nossa cultura ter transformado o prazer de comer em tortura é só um simples incômodo. O que me incomoda mesmo, no geral, são contradições ainda mais profundas como, por exemplo, o "maniqueísmo" cristão. Por causa da nossa herança cristã, não conseguimos evitar de separar o mundo entre o bem e o mal. O bem, para destruir o mal, pode matar, atirar, ser violento e até roubar. É o que vemos nos filmes, nos livros, nos contos de fada, na TV e na nossa vida. Nos relacionamos uns com os outros de acordo com esses termos. Canonizamos e endemonizamos pessoas próximas a nós o tempo todo. Somos intolerantes com colegas, amigos, vizinhos, familiares e desconhecidos. Vivemos, sem admitir, em uma cultura violenta. Uma cultura de combate impiedoso e eterno ao mal. E os maus as vezes são pessoas que até ontem eram boas aos nossos olhos. Basta um erro ou as vezes um rumor, um boato e uma desavença para lidarmos com outros seres humanos como lidaríamos com demônios.

Tudo isso em uma cultura que se vê como pacífica, apoiada no exemplo de amor e de paz de Jesus Cristo. Contraditoriamente, a mesma cultura que celebra seu momento máximo na sangrenta cena de crucificação desse mesmo homem e que come sua carne e bebe seu sangue (simbolicamente) em rituais sagrados.

Eu vejo uma série de discursos endemonizantes conquistando cada vez mais adeptos com o passar dos dias. E não são discursos novos. São repetições de discursos antigos. A santa inquisição não é mais convocada pela igreja católica contra protestantes e quaisquer outro tipo de herege. Ela é convocada por partidos políticos e por novas vertentes do cristianismo, e seus alvos são outros comportamentos, outras religiões e outros grupos. Homossexuais, índios, sem-terra, nordestinos, etc. E os adeptos substituem ativamente discursos antigos pelos mais atuais.

Os alvos, por sua vez, vêem em seus algozes a face do demônio. Ambos, no fim das contas, enxergam o lado oposto como demoníaco, desprezível e indigno de qualquer salvação.

Eis que me deparo com meu problema. Senti-me endemonizado algumas vezes na minha vida, mas nunca havia vivido uma polarização tão grande e tão cheia de raiva e baixarias como a dessas últimas eleições. E, de repente, percebi onde eu estava. Eu estava de um dos lados, fazendo exatamente o que acusava meus opositores de fazer. Vendo-os como demônios, como imbecis e como indignos.

E percebi o quanto é difícil sequer colocar isso em perspectiva. No fundo, não deixei de vê-los com maus olhos. E me sinto frustrado por isso. E frustrado em perceber que a nossa cultura, ao contrário da imagem que ela hipócrita e cinicamente construiu para si, tem por base máxima a intolerância ao próximo.

Eu gostaria de não ser assim. Eu apenas imagino como seria viver em uma sociedade que ensina, de fato, a respirar e a se acalmar antes de responder a uma ofensa; a ler e examinar com atenção os vários pontos de vista antes de fazer um julgamento; a lidar amigavelmente com as diferenças e a entendê-las como contribuições; a conviver, ao invés de converter.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O oráculo

Semana passada foi cheia de experiências novas. Umas muito boas.
Outras, estranhas.

Na semana passada, fizeram uma festa surpresa pra mim que realmente me alegrou muito. Eu até levei um bolo de aniversário bem grande pra casa e fiz a alegria da minha mãe, que continua a comê-lo na semana atual.

Mas a experiência mais estranha que eu passei foi uma ida ao psicólogo da minha namorada. Ele parece adotar a linha da "psicologia sistêmica", que se resume em considerar a rede de relações de um indivíduo como objeto de compreensão e estudo. Mas, falando assim, parece legal, né? A psicologia sistêmica também considera que os problemas e sintomas do homem advém de causas físicas, psicologias e ESPIRITUAIS. Desse modo, ela também considera questões relativas à espiritualidade e tem por expoente Carl Gustav Jung. Eu nem vou dizer o que penso de Jung, para que ninguém se perca. O mais importante vem agora e resume toda essa pequena divagação sobre psicologia sistêmica.

Ao entramos na sala do psicólogo, ele nos apresentou um jogo de tabuleiro. O "jogo do amor". A propósta era que eu e a Maiara jogassemos o jogo e falassemos sobre nossas questões como casal. Se o jogo fosse usado como ferramenta para nos fazer falar, ótimo.
A questão é que esse psicólogo, assim que começou a falar do jogo, disse que a idéia dele se originou do ORÁCULO DE DELFOS. O sujeito parecia mesmo achar que o oráculo de Delfos era um santuário espiritual onde as pessoas se questionavam sobre a sua existência. Ignorando o total erro histórico dessa análise, começamos a jogar e foi aí que eu percebi o inacreditável: ele realmente acreditava que o jogo também era um oráculo. A idéia não era nos fazer falar e nos comunicarmos! Era contactar o além, através do jogo do amor, e fazer O ALÉM nos dizer se a nossa relação tem futuro. Para tanto, precisávamos energizar os dados com energia positiva ao jogá-los e fazer perguntas ao além com o coração aberto e comunicativo.

Essa foi a experiência mais curiosa que tive nesses últimos meses. Será preconceito meu ver com PÉSSIMOS olhos um profissional - cujo dever seria cuidar da saúde mental de seus paciêntes - que joga um jogo de tabuleiro acreditando piamente estar diante de um oráculo sobrenatural? E que, ao invés de aconselhar e entender a relação de sua cliente com o parceiro, procura receber respostas vindas do além?

Bom, todos temos um preconceito. Esse é definitivamente o meu. Minha sorte foi o oráculo não notar a minha total descrença do começo ao fim da sessão. Senão, quem sabe, Zeus ou Poseidon poderiam me amaldiçoar. Se bem que isso seria bem legal.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

[ Pausa ] Mundo Espiritual

Eu estou em uma fase estranhamente espiritualizada. Talvez sejam os pensamentos sobre vida e morte, talvez outra coisa.

O fato é que tenho pensado muito sobre o meu papel nessa vida. E eu devo reconhecer que, como dizem os espíritas, essa minha encarnação atual tem sido muito boa.

Minha mãe me disse que, quando eu era pequeno, tinha mania de ficar sempre atrás de pitacos de cigarro e copos de cerveja, que era fascinado com isso. Ela acha que, se vidas passadas existirem, fui um boemio na vida anterior.

Se for o caso, talvez um dos objetivos da minha encarnação atual seja me livrar dos vícios. Em relação a vícios como fumar, beber e me drogar devo dizer que já completei o objetivo com total sucesso. Não fumo, não bebo e nem uso droga ilícita nenhuma.

Contudo, desenvolvi outros vícios e acho que preciso, atualmente, de mais disciplina para várias coisas. Dentre esses vícios, acho que tenho comido demais sem necessidade. Portanto, farei um compromisso nesse post de tentar me organizar melhor, de disciplinar mais e de me exercitar mais também. Afinal, faria bem para minha saúde, né?

Acho que vou retomar exercícios físicos. Hoje tive a inspiração de começar a correr. Vou tentar fazer isso.
Tomara que eu consiga. O fato de ter escrito me faz sentir um pouco mais motivado a continuar, justamente pra escrever depois que consegui e que estou orgulhoso de mim.

Só lamentarei se, no final, essa história de vidas passadas e encarnação com um objetivo de crescimento espiritual for tudo uma grande balela. Por que, aí, eu terei perdido tempo correndo e me exercitando quando poderia estar comendo e tendo outros prazeres. Já pensou que grande desperdício de tempo?

domingo, 15 de agosto de 2010

[ Pausa ] A angústia

(Eu pretendo tentar escrever todos os domingos, pelo menos, se eu conseguir.)

Durante essa semana, como na maioria das semanas da minha vida, experimentei extremos emocionais. Senti esperança, desesperança, satisfação, insatisfação, animação e preguiça. E também ocilei entre calma e raiva, amor e indiferença.

Santo Agostinho define o conceito de "angústia" em suas Confissões. Segundo o autor, a angústia é causada pela distenção da alma pelo tempo. A alma que não se reencontra, não sabe de sí mesma e nunca está em paz. Ela não sabe o que é, apenas sabe que não é mais o que já foi, e também não sabe o que será.

A alma se destende pelo tempo e seria essa a angústia primordial de todos nós. Eu, por outro lado, fico me perguntando se não estaria fadada a uma angústia ainda maior uma alma presa a uma alegria sem fim, a uma satisfação infinita, a uma eterna euforia. Agostinho compara a angústia do tempo com uma hipotética felicidade atemporal que ele nunca viu, apenas imaginou.

Em outras palavras: se você acredita que essa vida é ruim, você deve estar comparando-a com outra melhor. Mas que outra? Qual outra vida existe, senão essa mesma? Essa que se distende pelo tempo, repleta de contradições? Que outro mundo há e que outra vida é essa que todos imaginam e ninguém nunca viu, mas que todos tanto aguardam?

Eu, se fosse a vida, não perderia meu tempo com quem se recusa a me aceitar como sou e me trocaria sem pensar duas vezes por algo que somente vive na imaginação.

domingo, 8 de agosto de 2010

[ Pausa ] O chá derramado

O copo de chá se derramou sobre o chão do meu quarto e sobre a minha cama.

Aceitar a finitude e a passagem do tempo não é fácil pra mim. Desde pequeno tenho muito medo de morrer. Aliás, o que me aterroriza é o momento anterior à morte. Aquela hora em que pensarei: "é agora. Daqui a pouco estarei morto". Eu frequentemente imagino essa cena. E me pergunto: onde estarei quando o momento chegar?; estarei jovem, na meia idade ou velho?; estarei calmo e tranquilo ou assustado? E também me pergunto se verei esse momento chegar. Quem sabe seja repentino e eu nem perceba o que me atingiu.

Mas tive uma epifania sobre isso a pouco tempo, e ela gerou o impulso de retomar esse blog. Estava voltando para o meu quarto com um copo de chá gelado na mão quando, de repente, ao colocá-lo sobre o criado, ele caiu, derramando-se na cama e no chão. Meu dia estava ótimo até aquele ponto porem, logo em suas horas finais, quando eu pensava em me deitar e tomar algo refrescante, o acaso me atingiu. O momento me fez refletir muito e me fez perceber que o ocorrido era uma bela metáfora para a vida. Na vida, o chá se derrama. No exato momento em que ele molha o chão e a cama, queremos voltar no tempo e desfazer o acidente. Mas isso não é possível. E, para piorar, ficamos sem o chá e ainda precisamos limpar rapidamente a bagunça, afim de evitar maiores danos. Se não for a maior frustração do mundo, poderia entrar na lista das 10 primeiras. Pelo menos das 100 primeiras.

E por que isso aconteceu? Destino? Acaso? karma?
Bom, ninguém sabe. Mas assim é a vida. Algo que ninguém entende e que nos lembra constantemente que não temos o controle do que nos acontece. Em algum momento, o chá vai derramar. E o que separa um adulto de uma criança não é a idade e sim esse momento. Quando se entende que o curso de uma ação tão simples quanto se deitar para tomar chá pode ser radicalmente redirecionada pelo acaso, entende-se também que não se pode voltar no tempo para apagar o que nos desagrada. Entende-se que acidentes inevitáveis e sem sentido acontecem. Entende-se que, como o chá, nossa vida também vai se acabar, de uma forma ou de outra. E aquele que olha para o chá derramado sem chorar, aceitando que não pode tomar outro rumo senão limpar a bagunça, entendeu que precisamos aceitar nosso caminho pelo tempo. E aceitou que nossa jornada tem um fim, mesmo que seja doloroso.

Assim é a vida. Num dia, bebemos o chá. No outro, o chá se derrama.
Devíamos chorar?
Ou devíamos rir?