terça-feira, 11 de agosto de 2009

Série Crônicas de uma cidade # 2

Antônio Martins abre os olhos e olha a sua volta, assustado. O relógio marca 6:14 a.m. Ele olha para suas mãos, para seu corpo por debaixo das cobertas e em seguida respira fundo. Ainda não acreditando no que parece ter descoberto, ele se levanta e corre ao banheiro. O espelho confirma sua suspeita. Antônio Martins acordou, as 6:14 a.m do dia 23/ 07/ 2009 e descobriu que estava velho. Ele, que sempre sonhou tanto enquanto jovem – como quando sonhou em ser astronauta, ou em caçar dragões ou em encontrar um tesouro – agora já não sonhava mais. E estava no alto de seus sessenta e dois anos, exatamente, pois hoje é também seu aniversário. Mas, ao contrário do que se poderia pensar, o nosso caro senhor Martins não está em clima de comemoração. Ele está assustado. É como se, em um dia, ele tivesse adormecido aos 22 anos, no máximo de sua beleza e saúde e, no dia seguinte, acordado com 40 anos a mais. Talvez ele tenha razão.

Antônio Martins irá acordar, pegar o seu jornal e sair de casa. Aposentado, um de seus passatempos favoritos é ler e fazer palavras cruzadas em uma das mais movimentadas praças de Belo Horizonte. Enquanto ele se levanta, lava o rosto, troca de roupa, come alguma coisa, pega seu jornal e sai de casa, podemos voltar 40 anos atrás e saber se Antônio Martins tem ou não razão para acordar assustado hoje.

Há 43 anos atrás, as 22:02 p.m do dia 18/ 04/ 1966, ele conheceu a garota de seus sonhos. Era uma jovem muito bonita, de pele branca, cabelos e olhos escuros, lábios carnudos e definidos, rosto muito bem desenhado. O coração de Antônio ficou acelerado assim que a viu e ela o olhou de volta e o fitou, por apenas 3 segundos. Não importa onde se encontraram nem o que disseram um para o outro nesse dia. O que importa é que aquela fora uma noite que seria lembrada com saudade por anos a fio.

O velho Antônio Martins está, inclusive, se lembrando dela, nesse exato momento. Ele está quase sorrindo, se você reparar bem. Voltamos a 2009 e são 6: 45 a.m. Ele está caminhando pelas ruas de seu bairro agora, indo em direção ao ponto de ônibus, com o jornal embrulhado, enquanto memórias desse dia começaram a brotar em seus pensamentos.

E não é por menos. Essa fora a noite em que ele conhecera Mariana Ribeiro. E ela fez brotar em Antônio pensamentos e sentimentos que ele jamais havia conhecido, apenas visto nas novelas e nos livros. Ela o fez, pela primeira e última vez em sua vida, sonhar com os finais felizes, com as paixões eternas e, por mais brega que isso possa parecer a você, que apenas acompanha tudo de fora, com o amor verdadeiro. E Antônio jamais deixaria esse sonho se esvair dele. No dia 06/ 05/ 1966, Mariana Ribeiro olhou em seus olhos e sorriu, após ouvir a pergunta: “Você quer namorar comigo?” Os dois se beijaram: o coração de Martins estava disparado. Depois disso, passados 3 anos de namoro, no dia que antecedia seu aniversário, 22/ 07/ 1969, ele tomaria a decisão que havia formulado em suas fantasias desde que Mariana o olhara de volta pela primeira vez. Ele faria um anúncio no jornal. Obviamente, não um anúncio qualquer. Antônio se lembra de, após colocado o tal anúncio – que só sairia no dia seguinte – ter voltado para casa e dormido como um bebê. Ele se lembra de ter deitado sua cabeça no travesseiro e possuir nada além de satisfação em seus pensamentos. Seu caminho estava claro, e com ele dormia a certeza de que tomara a decisão certa.

O nosso Antônio Martins do presente acordou hoje sentindo como se 40 anos tivessem se passado depois dessa noite. A noite em que ainda era jovem. Ele caminha lentamente, ainda se lembrando de tudo, em meio as pessoas que passam de lá para cá, de carros buzinando, de motoqueiros e de crianças indo para a escola e começa a enxergar o ponto de ônibus em que irá esperar. São exatamente 7: 18 a.m quando ele avista o ponto. Mas voltemos ao passado.

O jovem Antônio Martins abre os olhos. De supetão, as 6:14 a.m, ele se levanta, animado e nervoso. Ele sai de casa como uma bala, chegando a casa de Mariana Ribeiro exatamente às 7: 18 a.m. Ela o abraça, o beija, o deseja feliz aniversário e, finalmente, lhe pergunta o que ele fazia ali tão cedo. Ele, animado, pede que ela abra o jornal. Ela começa a abri-lo, às 7: 20 a.m. Ele pede que ela vá à sessão dos anunciantes. Ela o faz, sem entender. Mariana começa a passar o olho na sessão até que um dos anúncios faz seu coração pular. Um deles diz:

“Mariana, você quer se casar comigo?”

Ela olha assustada para Antônio, que acompanhava a cena com muita expectativa. Como fizera 3 anos atrás, exatamente as 7:21 a.m, Mariana sorri e então o beija. Antônio é tomado por uma felicidade sem tamanho. Ela e ele se casariam dali a 1 ano.

E lá está, novamente, o velho Martins se lembrando exatamente dessa época, dos ocorridos de 40 anos atrás, enquanto começa a abrir seu jornal, já assentado em seu ponto de ônibus, as 7:20 a.m. Ao seu lado, se assenta um homem com o ar afobado, vestindo um terno, de barba feita, cabelos penteados, relógio e sapatos caros. Antônio não conhece esse homem, mas está a ponto de mudar a vida dele sem saber. Esse homem é João Braga. E João está prestes a ver algo fantástico, em 60 segundos.

Mas não podemos deixar o passado como está. Infelizmente, existe uma mágoa que o velho Antônio Martins – que está calmamente lendo o seu jornal enquanto corremos por essas linhas – guardou e da qual precisamos falar antes que ele veja algo chocante.

A mágoa? Em um momento, de repente, no virar de um minuto para o outro, o jovem Antônio deixou de acreditar em finais felizes, em paixões eternas e no amor. Todos seus sonhos de infância também se esvaíram, pois ele havia acabado de crescer. Não nos importa como. O que importa é que, passados 20 anos de casamento, Antônio descobriu que Mariana Ribeiro o traía regularmente, e por muito tempo, talvez até tempos anteriores ao casamento. Com quem? Se fosse com o melhor amigo de Antônio, ou com seu chefe, ou ainda com um desconhecido – ou quem sabe com todos eles – também não nos importaria. O que importa é que, a partir do dia 12/06/1990, o jovem Antônio Martins deixara de acreditar em seus contos de fada e, assim, deixara morrer sua juventude, exatamente na virada das 23: 45 hrs para às 23: 46, no segundo 43. Os milésimos também não nos importam.

O que veio depois disso, espero eu, dispensa comentários detalhados. Apenas um tolo aceitaria continuar em uma relação permeada de mentiras e de traições. Apenas um tolo fecharia seus olhos diante dos próprios sonhos destruídos, de seu tempo perdido, da esperança morta. O que veio depois da traição descoberta foram papéis. Papeis que carregariam as assinaturas de Antônio e Mariana, tornando oficial a separação.

Passados 18 anos, Antônio presenciou algo que, sem sua consciência, mudaria a vida dele e a de João Braga definitivamente. Devo lembrar que – no presente – os dois ainda estão congelados, ainda no virar do minuto das 7: 20 para as 7: 21 a.m, no ponto de ônibus. Acontece que Antônio vira um homem, com seus 27 anos no máximo, decidir, após mais de 3 horas de conversas com a polícia e com os bombeiros, se jogar do alto de um edifício de 18 andares, no dia 18/ 09/ 2008, as 16:15 p.m. Ele o fizera após tomar coragem para abrir um envelope que esteve em sua mão ao longo do episódio inteiro e ler a carta que lá estava dobrada.

Antônio, que viu tudo da calçada, concluiu que jamais desistiria como aquele homem, não importava o quanto sua vida havia dado errado. Ele, que agora vive sozinho em um apertado apartamento no centro da cidade, sem filhos, amigos ou pais, enviou uma carta à Mariana, que dizia:

“Mariana, eu queria perguntar uma coisa. Você sempre soube o que eu sentia por você. Mas você, por outro lado, não parecia sentir o mesmo, já que precisou me trair por tanto tempo. Eu nunca entendi por que nos casamos, se era para você sair com outra pessoa e me iludir. Eu me lembro que, depois do dia em que eu descobri a sua traição, você chorou – e chorou muito – me pedindo perdão, dizendo que aquilo fora um erro. E eu descobri que o errado ali era eu. Você esteve errando por...20 anos? Errando em me trair ou em estar casada comigo, afinal? A verdade, Mariana, é que eu ainda amo você. E jamais vou me esquecer do garoto cheio de esperanças, sonhos e crenças românticas que eu me tornei e continuei a ser por 20 anos. Eu me dei conta, recentemente, que você nunca me disse mesmo se aceitava se casar comigo. Apenas sorriu. Então essa é a minha pergunta: Mariana, agora que você já sabe como eu sou, conhece meus defeitos, minhas qualidades, você seria capaz – se pudéssemos voltar atrás no tempo, naquele dia em que você viu o meu anúncio – de se casar comigo e de ser fiel a mim, acreditando, como eu acreditava, que somos almas gêmeas? O que você me diria, Mariana, se nós dois pudéssemos voltar no tempo?”

A resposta nunca veio. E ele, desde então, começara a sentir a certeza que havia trilhado o caminho errado. Que toda a dedicação e tudo o que tinha realizado em 40 anos de existência fora uma grande perda de tempo. A desesperança nunca o atingira tão forte quanto hoje, ao acordar no dia 23/ 04/ 2009.

E ali, exatamente às 7:21 a.m desse mesmo dia, folheando o jornal, o velho Antônio encontrou algo que talvez estivesse direcionado a ele, talvez não. Algo que talvez não passasse de um golpe publicitário ou de um código de um desconhecido para outro. Isso não nos importa, como também não importa a Antônio agora. O que importa é que encontrar aquilo, folheando aquele jornal, o surpreendeu. Demorando seu olhar sob aquelas letras, ele sentiu as lagrimas vindo, enquanto ousava pensar que talvez não havia desperdiçado sua vida. Ele sentiu o jovem alegre e apaixonado que uma vez ele já fora nascendo novamente e aquecendo seu peito. Ele se sentiu forte o suficiente para voltar a acreditar em suas antigas fantasias, seus sonhos desvairados e seus faz-de-conta. Ele não se sentia mais um tolo pela primeira vez em muito tempo. E Antônio, com muita alegria havia, naquele momento, voltado a ser quem ele nunca devia ter deixado de ser: alguém que cultiva belas esperanças e sonhos de juventude.

João Braga olhava atentamente, enquanto Antônio Martins, emocionado, lia um grande e destacado “SIM” colocado bem no meio do caderno de anúncios.

Não nos importa saber se esse SIM fora colocado ali por Mariana ou não. Sonhos não precisam acontecer para serem sonhados. Não nos importa nem se Antônio está ou não acreditando em uma mentira de propósito. O que nos importa é que Antônio começou esse conto como um senhor e o terminou como um jovem. O que nos importa é saber que o jovem finalmente encontrou seu tesouro. E que ele agora está bem.

2 comentários:

  1. ... muito boa crônica. se os seus objetivos eram de fazer com que o seu leitor refletisse ou se emocionasse, você foi absolutamente bem sucedido... fiquei com os olhos ardendo...

    ResponderExcluir
  2. Me emocionei...! Espero que o Antônio, em meio aos seus 62 anos, continue sonhando e procurando seu caminho!

    ResponderExcluir