Perdi um familiar muito querido há dois meses. Desde então, fui tomado por uma melancolia enorme. Enquanto o Brasil pegava fogo com gritos e protestos, não me vi compelido a participar de nada. Absolutamente nada. Até porque, sinceramente, eram manifestações de insatisfação muito genéricas e nenhuma me seduziu. Enquanto as pessoas saíam às ruas por qualquer motivo, muitas simplesmente querendo expressar um sentimento explosivo que eu não tenho, no momento, fiquei observando de longe.
Enquanto isso, ainda de luto, comecei a rever um desenho que conheci na minha adolescência. Não sabia a razão disso, só comecei a pensar naquele desenho e a revê-lo, mesmo com tanta coisa pra fazer. Eu fui revendo episódio por episódio, sentindo emoções que não tinha experimentado nas primeiras vezes em que ví. O desenho era outro agora que sou outro.
Eu não entendia a razão de tanto impacto por rever aquela história. Foi um desenho que eu assisti com meu familiar falecido, isso eu sempre soube, mas algo mais estava acontecendo enquanto eu o assistia. Foi somente após o último episódio que me dei conta do que estava acontecendo.
O desenho é sobre um rapaz jovem, que cresceu em um ambiente inóspito. Seu pai abandonou a família. Sua mãe se entregou completamente ao álcool. Na escola, os professores não dão crédito a ele. O garoto possui uma agressividade muito grande em relação a tudo, como resposta. Ele encontra algum afeto por parte de uma menina que acaba virando sua namorada, mas somente dela.
Num geral, ninguém dá nenhum crédito a ele. Ninguém acredita que ele seja capaz de nada de bom. Um dia, ele encontra um garotinho jogando bola na rua e o avisa pra tomar cuidado. O menino, teimoso, continua e acaba jogando a bola no meio da rua movimentada e indo atrás para buscá-la. O protagonista se joga para salvar o garoto e morre atropelado. Mas sua morte foi uma surpresa até pro mundo espiritual: ninguém, nem Deus e a própria morte esperavam que ele desse a vida para salvar alguém. Então oferecem a ele a chance de reviver, já que não existe lugar pra ele nem entre os mortos. A fala do protagonista é a mais impressionante. Ele diz que não quer reviver, pois ninguém sentiria sua falta. Todos estariam melhor sem ele.
Ou seja, sua auto-estima era, com razão, muito baixa. Mesmo assim, ele decide tentar reviver principalmente depois de ver como sua mãe reagiu e se entristeceu. Sim, ela bebia, mas isso nada tinha a ver com o imenso amor que sentia pelo filho. Ele se comove, revive e depois disso, se torna um funcionário do mundo espiritual. Sua missão é encontrar demônios e caçá-los. Ou seja, esse protagonista, tão hostilizado pelo ambiente em que nasceu, fruto de uma família desestruturada, encontra uma maneira socialmente aceitável e produtiva para liberar sua agressividade. E, por meio dessa agressividade canalizada, ele recebe suas maiores conquistas e seu maior reconhecimento. Através de suas aventuras, faz amigos fiéis que o admiram e se tornam companheiros.
Em vários momentos, no entanto, esse protagonista se mostra tão temerário que sua coragem parece se apoiar ainda naquele sentimento inicial de que a sua vida tem pouco valor. Ele no início entrega - sem pensar duas vezes - a única chance que tinha de reviver para salvar sua namorada. Com sorte, a entrega não passava do último teste para reviver e assim o enredo prossegue. Em outro momento, ele deliberadamente se deixa matar por um inimigo poderoso para que a sua morte evoque a força de seus companheiros e isso os faça derrotar o vilão. Mais uma vez, para que o enredo continue, ele é novamente trazido de volta.
Foi somente depois do desenho que eu entendi o que estava acontecendo. Esse protagonista era o meu familiar. As histórias eram - afora os elementos fantásticos - iguais. Eu procurei respostas e sentido para o ocorrido nesse desenho. Vivi o luto através da arte, da fruição, do correr da história. E, através dela, percebi algo que não percebera anteriormente: que ambos protagonista e familiar carregavam, dentro de si, um sentimento de baixa estima. Que estava ali, há tempos, uma semente que poderia resultar em uma tragédia.
Infelizmente, não estamos no mundo da ficção. Aqui, diferente de lá, não se pode entregar a própria vida três vezes e continuar vivo. Noto que, em todas, as mortes foram ocasionadas pelo próprio protagonista e não por um elemento externo. Mas eu gostaria de viver no mundo da ficção. Gostaria de tê-lo de volta, de vê-lo novamente, de poder chamá-lo de idiota e de poder reclamar dele. Gostaria de poder rir novamente com ele, de embarcar em mais uma aventura com ele e de torcer por ele em um torneio. E eu pude fazer tudo isso ao rever o desenho. E fiz. E, por alguns instantes, realmente acreditei que ele tivesse voltado.

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