Parecia um dia comum naquela delegacia. Denuncias sendo feitas, documentos sendo apresentados, relatórios sendo redigidos. Policiais passando aqui e ali. Vítimas também. Telefones tocando, pessoas conversando, dedos digitando, impressoras antigas fazendo todos os tipos de barulho, etc. Um dia comum.
Alguém entra na delegacia e consegue a atenção de todos. É um homem. Ele grita algo tão alto que todos os outros sons parecem apenas ruídos perto de sua voz. E todas as pessoas se calam para ouví-lo.
Ele disse:
- Eu matei uma mulher! Acabei de fazer isso! Eu a enforquei!
Obviamente, isso seria chamativo em qualquer lugar. Mas, obviamente, sendo o lugar em que tal grito foi entoado uma delegacia, o silêncio e a atenção de todos sobre esse individuo foram redobrados, se é que isso era possível.
Ele continuou:
- Eu sou o culpado! Não tentarei fugir! Posso até dizer onde está o corpo! Podem me prender quando quiserem!!
Geralmente, a ação da polícia é ineficaz em praticamente todas as denúncias e queixas feitas ali. Mas, diante de uma denúncia feita por um indivíduo contra si mesmo, se entregando, os policiais agiram bem rápido. Correram em direção ao homem e o agarraram com força, como se houvesse nisso algo heróico, e como se ele tivesse manifestado qualquer intenção de fugir.
Minutos depois, o homem foi algemado e colocado de frente ao delegado para se explicar.
- Eu matei mesmo uma mulher. Ela se chama Juliete. Aconteceu em uma casa em construção. Não é muito longe daqui.
O delegado, surpreso ainda com toda a situação, decidindo se acredita ou não naquele homem, perguntou:
- Juliete? Isso lá é nome de gente? Você tá falando a verdade!? Se isso for algum tipo de brincadeira...
Seu tom era de ameaça. Todos estavam tensos. Dois policiais estavam na sala, ouvindo a conversa também.
- Não é mentira. Eu matei essa mulher. Eu fui obrigado a fazer isso.
O delegado agora estava indignado:
- Obrigado!? Ela por acaso pediu pra você fazer isso!? Que absurdo é esse?
O homem olhou diretamente para o delegado e respondeu:
- Eu tive que fazer isso. Eu vou me casar amanhã.
Até mesmo os policiais em volta não puderam evitar. Os queixos caíram e os olhos se arregalaram.
O delegado mandou que os dois saíssem. Ele respirou fundo e se lembrou do que tinha de fazer.
- Antes de mais nada, rapaz, me diga o seu nome completo.
- Gabriel Costa Neto. E essa é a minha carteira de identidade.
O delegado verificou. "Gabriel Costa Neto" era um homem de 26 anos. Sem nenhuma passagem anterior pela polícia. Residência fixa...aparentemente um cidadão comum. Não parecia o tipo que cometeria um crime tão bárbaro. Ele também colocou a cabeça no lugar: com tantos nomes estranhos surgindo atualmente, Juliete certamente não fora o mais estranho que ele já ouvira naquela delegacia.
O delegado continuou:
- Você não preferiria ligar para um advogado? Você não é obrigado a fornecer provas contra si mesmo, principalmente sem a presença de...
Ele foi interrompido pelo rapaz.
- Eu quero confessar tudo a você, Sr. delegado. O que vai acontecer comigo daqui em diante é critério seu.
O delegado ainda não sabia qual era a razão daquilo tudo, mas decidiu tomar garantias. Ele convocou os dois policiais que havia dispensado e, assim que entraram, pediu a Gabriel que ele fornecesse o endereço do local onde o corpo estava. Gabriel fez isso sem hesitar.
Os dois homens saíram da sala às pressas, enquanto o delegado continuou a conversa.
- Essa tal Juliete, qual é o nome completo dela?
- Apenas Juliete. Isso já basta, delegado. Vocês irão encontrar o corpo.
O delegado respirou fundo. O endereço onde o crime supostamente ocorreu não era tão próximo assim. Isso significava que o rapaz a sua frente precisou de dirigir por pelo menos uma hora para chegar àquela delegacia e se entregar. Ele precisava tomar cuidado, a situação toda era muito atípica.
- Você disse, Sr. Gabriel Neto, que iria se casar amanhã e que, portanto, foi obrigado a cometer o homicídio. Qual era a natureza do seu relacionamento com essa...Juliete? É com ela que você vai se casar ou...ela era uma...parceira extra-conjugal?
- Eu não vou me casar com a Juliete. Eu adoraria, mas eu não posso.
Essa resposta preocupou o delegado. O rapaz continuou.
- Eu vou me casar com uma garota que conheci na faculdade. Ela não tem nada a ver com a Juliete.
- Então era uma amante? Por acaso essa Juliete já era casada, Gabriel? Ou você não queria que ela se envolvesse com mais ninguém mesmo depois que você se casasse? É isso o que houve?
O rapaz parecia pálido. E trêmulo. Ele disse, em voz baixa:
- Eu não acredito que eu realmente consegui.
O delegado se indignou:
- Escute aqui...se eu ouvir você dizendo algo assim de novo, coloco você na cadeia e não escuto uma palavra sua até meus homens me avisarem o estado do corpo da vítima.
Gabriel se desculpou, mas ele agora parecia ainda emanar um ar de satisfação. Mas não um ar cruel, o que deixava tudo intrigante. De qualquer forma, pensou o delegado, ele já iria para a prisão mesmo que tudo isso não passasse de um devaneio vindo de um maluco. O delegado continuou a conversa:
- Então você e ela eram amantes?
- Não.
- Você e ela já se envolveram antes?
- Eu pensei que sim, Sr. delegado. Achei ter me envolvido com ela várias vezes. Mas eu estava enganado.
- Então você é um doente, Sr. Gabriel. Me desculpe por quebrar alguns procedimentos, regras e protocolos de conduta, mas eu estou farto de homens como você. Homens que acham que possuem uma mulher. Que acham que elas são seus objetos, suas possessões. E não permitem que elas os abandonem, que sigam com suas vidas...vocês precisam delas mesmo que seja à força, não é, seu covarde!? Se quiser continuar conversando comigo, vai ter que ouvir o que penso de você!!!
- Você pode dizer o que quiser, Sr. delegado. A verdade é que ela foi, para mim, a pessoa odiosa que você descreveu. Ela não me deixava seguir em frente, não me deixava esquecê-la...e certamente não me deixava abandoná-la.
O delegado estava furioso e confuso. Nada daquilo fazia sentido.
- Mas você não acabou de dizer que você e ela nunca se envolveram? Que história é essa agora? Ela era a possessiva? Era ela quem não deixava você seguir em frente e por isso você a matou!?
- Isso mesmo. Eu precisava fazer isso. Eu vou me casar amanhã.
- Você vai é pra cadeia, Gabriel.
O rapaz parecia não se importar com isso. O delegado recolocou o pensamento no lugar, e continuou:
- Então deixe-me ver se eu entendi...você estava apaixonado por essa mulher, essa Juliete, não estava?
- Sim. Muito. Passei a vida inteira gostando dela, Sr. delegado.
- E você precisou matá-la por que, exatamente? Se você gostava tanto dela e ela não te deixava ir, qual era o problema? Por acaso ela é alguma pessoa com quem você não podia se envolver? Uma prima? Irmã? Filha...?
O delegado estava incomodado com o possível curso dessa conversa.
- Não, Sr. delegado, ela não era da minha família. E eu passei a minha vida inteira apaixonado por ela, mas isso acabou quando eu conheci a minha futura esposa. Ou pelo menos eu fiz acabar. Hoje.
- Então...você acha que matando essa mulher você vai conseguir esquecê-la e se casar amanhã? Você perdeu o juízo, rapaz!?
- Ela não me deixaria casar, delegado. Não me deixaria viver uma vida normal, ter filhos com a minha futura esposa, cuidar dela, amá-la...nada disso. Ela já fez isso antes.
- Como? Por favor, explique.
- Sempre que eu me envolvia com alguma mulher, lá estava ela. Ela aparecia, me atraída, e atrapalhava tudo. Era ela quem eu buscava em todos os meus antigos relacionamentos. Mas hoje isso acaba.
- E vocês nunca se envolveram fisicamente, Sr. Gabriel? Essa tá difícil de engolir, com o perdão da palavra.
- Nunca. Antes isso me incomodava, mas não mais. Eu quero viver uma relação normal agora, com a minha futura mulher.
- Eu não acho que é assim que as coisas irão acontecer, Sr. Gabriel. Se você quer tanto se casar amanhã, por que cometeu um crime tão bárbaro e ainda se entregou desse jeito?
- Por que o Sr. é a lei, delegado. Eu precisava ouvir o que você tem a dizer. Eu preciso saber se o senhor concorda comigo ou não. Se o Sr. acha perdoável o que eu fiz.
O delegado agora tinha certeza de que estava conversando com um maluco. Ele se cansou daquilo e mandou levarem Gabriel para uma cela. Ele ficaria ali até a perícia voltar. E, após duas horas de espera, seus homens voltaram.
- Não tem corpo nenhum naquele endereço, Sr.
O delegado, furioso, se levantou e foi pessoalmente tirar satisfações com Gabriel. Por que se entregar depois de um assassinato e dar o endereço falso? Nada daquilo fazia sentido. Ele se dirigiu rapidamente à cela do rapaz e, apertando as grades com força, disse:
- Os homens não encontraram nada no endereço que você indicou, rapaz. Eu vou acabar com a sua vida se isso foi piada sua.
O rapaz parecia assustado.
- Então...não encontraram nada? Certeza absoluta!?
- Sim. Me explique agora o que está acontecendo.
- Então, Sr. delegado, acho que não vou me casar amanhã...acho que ela sobreviveu.
- Como é!?
- E acho também que você não me ouviu com a devida atenção, delegado. Você ainda não entendeu? É tão óbvio. Uma mulher que está em todos os nossos relacionamentos, mas com quem nunca conseguimos nos envolver. Uma mulher que não nos deixa seguir em frente e que certamente não pode morrer. Não facilmente. Eu já tentei fazer isso antes, não se lembra?
O delegado parecia confuso. Ele não entendia nada daquilo.
- Eu já tentei matá-la antes. O Sr. não se lembra?
- Eu...acho que não...
O delegado estava inseguro quanto a isso.
- Quem é essa mulher de quem eu falei, delegado?
O delegado resolveu deixar o teatro de lado e respondeu:
- Você não devia sair nunca mais dessa cela, Gabriel. Nós não devíamos.
Gabriel se calou.
- Você falhou novamente. E agora nós vamos nos casar. Tudo vai ser um inferno. Ela vai voltar e estragar tudo.
- Eu sei...
- Quantas vezes eu já repeti isso, Gabriel? Você precisa matá-la. Não existe prisão no mundo que o condenaria por isso! Mas não há perdão por você ter falhado dessa vez. Isso vai magoar muitas pessoas lá fora.
Gabriel agora apenas concordava melancolicamente com a cabeça.
O delegado continuou:
- Gabriel, quantas vezes eu preciso dizer? A Juliete não existe. Nunca existiu.
Gabriel continuou calado. O delegado, em um tom severo, prosseguiu:
- Ela é a mulher perfeita! Aquela que sabe sempre o que você está pensando, que gosta das mesmas coisas que você, que conhece até aquilo que você não sabe, que tem a mesma visão de mundo que você! Aquela que é a união de tudo o que você considera atraente fisicamente! A mesma que você procurou em todas as mulheres reais com quem já conviveu!
- Eu sei, delegado. Eu sempre acho que a encontrei em carne e osso. Sempre encontro o rosto dela por detrás de todos os rostos que conheço. Até descobrir que ela não estava ali, de fato. Até me decepcionar com os defeitos e as incompatibilidades de uma parceira real. Até perceber que não é com Juliete que estou, mas sim com uma farsante. E eu sei, delegado, que só a Juliete vai me fazer feliz. Eu preciso encontrá-la.
- Viu? Ela ainda não morreu. E é por isso que você devia ficar aí até apodrecer. Você vai continuar voltando aqui e falhando em matar esse fantasma. E vai continuar estragando todo e qualquer envolvimento amoroso que tiver por causa disso. E vai desperdiçar a vida inteira correndo atrás de um vulto. Agora vá, você está liberado.
Gabriel saiu, melancólico, andando pelo longo corredor da delegacia.
A música tocava alto, e ele estava de smoking.
Todos os convidados o olhavam.
Ele caminhou até o altar e aguardou.
Meia hora depois, olhou para sua noiva e, com uma simples palavra, concluiu a cerimônia:
"Sim".
Todos festejaram.
Mas Juliete o observada, de algum lugar. Ela sabia que nada daquilo iria durar.
E Gabriel também sabia que não era ela quem o estava beijando enquanto todos soltavam gritos de alegria.
Paeja
Há 4 meses
A ideia do texto é excelente. Você poderia vender esse conto para uma junta psicanalítica... ajudaria muita gente a entender seus relacionamentos, suas expectativas, a se entender...
ResponderExcluirAgora, o engraçado é que, quando me indicaram esse texto, disseram que a personagem se chamava Renata - o que seria genial, já que o nome significa "a renascida/ a que renasce"...