Paulo Quadros é um artista. Seu talento artístico sempre foi, desde novo, a pintura. Ele não sabia atuar, cantar, dançar ou tocar nenhum instrumento musical. Ele só sabia pintar e isso sabia fazer muito bem. Quando mais jovem, na altura de seus 8 anos, Paulo fez seu primeiro quadro: o de uma garota usando um belo vestido azul e com cabelos loiros e lisos. Essa, era Claudia. Aos 10, ele pintou Carolina, que tinha um sorriso realmente encantador e estava vestida como as garotas de sua idade, com uma saia e um arco colocando o cabelo - castanho e todo cacheado - para trás. Aos 15, pintou Bárbara. Aos 18, Ana Clara. Aos 21, Rafaella. A última obra fora Mariana, agora aos 31 anos. E ela é o quadro mais bonito, pelo menos na opinião do próprio autor, dentre todos os que ele já pintou.
Paulo Quadros acordou às 6:05 am do dia 18/09/2008, em seu apartamento e, ao olhar para a mesa em que seus materiais de pintura ficavam, constatou algo perturbador. Algo que causará a sua morte ainda hoje. Mas Paulo ainda não sabe disso. Ele está muito mais preocupado em tomar seu café da manhã, tomar um bom banho, escovar os dentes, se vestir e ir trabalhar. Ele ainda não se deu conta, a essa hora da manhã, do quanto se levantar não faria sentido algum, dado o que descobriu ao olhar sua mesa de materiais. Ele apenas sabe que hoje é um dia decisivo, mas ainda não precisamos falar o porque.
Paulo não é pago para pintar. Pintura é o que ele fez por prazer, por gostar, por um inclinamento natural. O verdadeiro trabalho de Paulo não aproveita em nada seu talento. Aliás, é justamente o oposto da atividade artística: um trabalho enfadonho que não demanda criatividade alguma para ser realizado. Aguardamos enquanto ele melancolicamente veste sua camisa social, acerta a gravata, veste a jaqueta do terno e pega as chaves para sair. Ele levará exatamente 32 minutos para fazer isso, simplesmente porque não sente vontade de fazê-lo. Então sairá de casa às 7:01 a.m. E o que o Paulo faz? Já não importa saber que é um trabalho desinteressante e melhor definido simplesmente como chato? Paulo pintaria seu ambiente de trabalho apenas em tons de cinza, se pudesse.
Vejam Paulo saindo de sua casa. Quando alguém o olha assim, com tanta atenção como nós, seja na rua, no trabalho ou pelo vidro de seu carro, jamais consegue imaginar o real talento dele. Por fora, ele aparenta ser um homem como qualquer outro, talvez até mais melancólico e sem graça que a grande maioria. Mas o que ninguém sabe é que o nosso protagonista possui um talento anormal, realmente espantoso.
Paulo não simplesmente pinta qualquer coisa. O tema de suas pinturas sempre foram, desde a primeira até a última obra, mulheres. Mas ele não apenas pinta essas mulheres. Ele cria seres humanos totalmente novos com seu talento. Essas mulheres não são apenas imagens estáticas feitas de tinta: elas possuem vida própria. Paulo é o único que conhece todas a fundo. Elas, como qualquer pessoa, são dotadas de uma personalidade única. Cada uma gosta de um certo tipo de música, de um número variado de filmes, de uns certos tipos de programas, de um certo estilo de roupas...Algumas gostam de teatro, outras gostam de poesia, outras sabem tocar algum instrumento e outras ainda também pintam, como Paulo. A única coisa em que todas elas se parecem é no fato de serem, aos olhos de seu criador, mulheres perfeitas.
Como já foi dito, hoje é um dia decisivo para o nosso protagonista. Há algum tempo ele começou a suspeitar de algo realmente assustador sobre si mesmo. Algo que comprometeria totalmente aquilo que dava sentido ao grande ofício de sua vida e à vida mesma: a arte. Suas suspeitas seriam confirmadas ou refutadas hoje e o resultado disso, como vocês já suspeitam, será de grandes conseqüências. Caso de vida ou morte, como diria algum não-tão-engraçadinho.
Agora são 7:45 a.m e Paulo está parado em uma fileira de carros, motos e ônibus, cheios de estudantes, de estagiários, de turistas e de pessoas atrasadas para o trabalho como ele. Como você já pôde notar, Paulo encara o engarrafamento com uma expressão triste e desanimada. Em um ambiente assim, ele não pode escapar de suas preocupações, que borram completamente o cenário estático e feito com tons de branco e preto para o qual Paulo encarava com olhos vazios.
Serão mesmo verdadeiras suas suspeitas? A dúvida revira o estômago de Paulo e inunda seus olhos. Ele poderia perder a única coisa em que realmente se considerava bom e que realmente fazia dele um homem único, marcante e genial. Seria sua alma, segundo o próprio Paulo, que estaria em jogo. E o desespero toma o controle do nosso protagonista a ponto de fazê-lo chorar, em plena luz do dia, em meio a um enfarrafamento no centro de Belo Horizonte, exatamente às 7: 51 a.m do dia 18/09.
Um rapaz, parado com seu veículo exatamente ao lado do de Paulo, assiste a cena intrigado e também preocupado. Ele abaixa o vidro da janela do passageiro e, sem pensar muito, diz:
"Ei...olha, eu não sei o que te aconteceu nem o que ta se passando. Mas me ensinaram, tem pouco tempo, que as coisas sempre melhoram se você conseguir esperar, viu? Força aí, cara! Isso vai melhorar!"
Paulo olha surpreso para o rapaz, sentindo-se estranhamente grato pelas gentis palavras do jovem, que não passa de um completo desconhecido. Outra coisa chama a atenção de Paulo em seguida: o carro do rapaz estava curiosamente amassado em sua parte dianteira, como se tivessem atropelado alguma coisa com aquele carro a pouco tempo. A gentileza desse desconhecido e o estranho formato da lataria amassada ajudaram nosso protagonista a vagar mentalmente por outros caminhos e, assim, distraídamente, chegar ao trabalho, cruzando os portões do estacionamento às 8:23 a.m.
Por quê hoje é um dia decisivo para Paulo e qual é a sua grave suspeita?
Enquanto Paulo sai de seu carro, pega o elevador e vai para a sua sala, em exatos 7 minutos, iremos responder a essas perguntas, finalmente.
A melhor resposta seria começar pela história de seu último quadro, Mariana. Paulo criou Mariana em um dia chuvoso. Quando a primeira imagem dela surgiu em sua mente, ela não era nada além de uma mulher muito atraente. Mas, aos poucos, Paulo foi se tornando cada vez mais íntimo de sua imagem, percebendo e empregando qualidades inerentes àquela beleza singular. Seus olhos, cheios de vida e cor, diziam a Paulo que ela também gostava de admirar os dias chuvosos. Sua pele, tão bem cuidada e perfumada, dizia a Paulo que ela era uma mulher sensível e carinhosa. Os cabelos, tão vistosos, diziam que ela inteligente, decidida e, principalmente, sofisticada. Seus lábios, tão bem desenhados, diziam que ela sabia se expressar muito bem e que sua voz era suave, limpa e agradável. Seus ouvidos, enfeitados sempre por um refinado par de brincos, diziam que ela não se divertia tanto em locais apunhados de gente, mas sim em locais calmos, com música leve. Suas mãos, delicadas e lisas, diziam a Paulo que ela era uma exímia tocadora de piano e ótima escritora. Mas o conhecimento dele ia muito além. Paulo sabia mais sobre Mariana. Soube que ela se perdia em sua imaginação ouvindo às melodias de Dario Marianelli; que ela também adorava dormir ao som de Cazuza e de Chico Buarque; que, ao ver um casal de idosos na praça, seu coração se enchia de esperanças; que ela achava graça de tudo e facilmente ria até enxarcar os olhos; que ela preferia cães a gatos; que ela sentia como se todas as mazelas do mundo estivessem sendo levadas em um dia chuvoso. Mariana era perfeita aos olhos de Paulo e, sem dúvida, a única capaz de fazê-lo feliz.
No presente, Paulo chega a sua sala, exatamente às 8: 36 a.m, e contempla - com o coração acelerado - a uma pequena pilha de cartas ainda embrulhadas pelo envelope em sua mesa.
Uma verdade precisa ser dita: Mariana, assim como as outras, não são apenas pinturas nos quadros de Paulo. Cada uma delas existe e fez parte da vida de Paulo.
Paulo, em sua sala, caminha em direção a sua mesa olhando, nervoso, a pilha de cartas. A última e mais recente delas, justamente a primeira da pilha, foi-lhe enviada por Mariana.
Em algum momento há meses atrás, uma terrível suspeita cruzou a imaginação de Paulo: a de que todas as mulheres que tenham sido pintadas por ele, sem excessão, não fossem exatamente como ele as havia concebido. Por uma razão que não cabe interpretar agora, tal pensamento trouxe ao nosso protagonista um incômodo indescritível, pelo menos não pelas palavras. Talvez algo em tons frios, melancólicos e sombrios nos trouxessem melhor uma idéia do que ele sentiu.
É por essa razão que Paulo, em sua sala, está, nesse momento, abrindo as primeiras cartas. Tratam-se de respostas para algumas perguntas que Paulo enviara a todas as mulheres que ele já havia pintado. Tais perguntas procuravam, apenas, conhecer os gostos, as preferências e as opiniões das versões reais de seus quadros.
Outra verdade deve ser contada: Paulo nunca conversou com nenhuma dessas mulheres. Ele apenas as viu, todas, em um ambiente de seu cotidiano. Cláudia, Carolina e Bárbara foram suas colegas de sala na escola; Ana Clara sua colega de cursinho; Rafaella, colega de sala em sua faculdade. E Mariana? Bom, essa ele apenas vira de relance, em um dia chuvoso, a esperar no ponto de ônibus. Nada mais. E ele conseguira, recentemente, a façanha de, depois de muito procurar e investigar, descobrir os endereços atuais de cada uma de suas musas, inclusive o de Mariana, cujo nome ele também desconhecia. Melhor não contar como ele realizou essa tarefa por não ser nossa intenção aqui lançar a Paulo qualquer mal julgamento, especialmente agora. Ele esperou até que a última resposta chegasse para, então, ler todas de uma só vez.
Paulo abre cuidadosamente a primeira carta. A resposta de Cláudia. Depois, trêmulo, a segunda, escrita por Carolina. Ele não fará nada além disso até às 13:30 p.m. Depois, às 13:31, Paulo finalmente se levanta, de posse de uma carta com o envelope não violado em mãos, dirige-se a janela de sua sala - que já estava aberta - e cuidadosamente sai por ela, primeiro se abaixando depois passando primeiro sua perna esquerda, depois a direita. Ele está de pé e apoiado, agora, apenas por um estreito degráu de cimento que fica logo abaixo de sua janela. Paulo olha para a cidade abaixo dele: poucos prédios mais altos e incontáveis pessoas, carros, motocicletas e ônibus a muitos metros abaixo dele.
"Isso sim daria uma bela pintura..." pensou.
E então, de acordo com o boletim oficial, após 3 horas de negociação frustrada, Paulo Quadros, de 31 anos, às 16:15 do dia 18/09/2008, saltou do décimo oitavo andar do prédio em que trabalhava. Ele fez isso após ler a última das cartas de sua mesa que, aliás, continuou em suas mãos durante o início da negociação com os bombeiros. Essa carta nunca fora encontrada pelos investigadores que cobriram o caso.
Nesse ponto, o leitor sente-se confuso. Teria Paulo se jogado apenas por ter descoberto que as mulheres pintadas não eram exatamente como ele as havia imaginado? Seria mesmo possível? De fato, a maioria das características imaginadas por Paulo, ou pelo menos as que ele considerava essenciais, não chegaram a realmente condizer com as respostas nas cartas. Isso nós já havíamos imaginado. Mas, ainda assim, não nos parece motivo suficiente. E não podemos nos esquecer que aquilo que causara a sua morte não fora, se voltarmos ao início desse relato, nenhuma das cartas mas sim algo que ele vira na mesa em que guardava seus materiais de pintura, logo pela manhã.
Na verdade, não há nenhuma boa explicação para um ato como esse aos nossos olhos. Portanto, nada do que se diga sobre Paulo poderá, algum dia, dar uma justificativa aceitável à sua decisão. Apenas um fato curioso: não foram encontradas nenhuma das pinturas mencionadas no apartamento de Paulo, muito menos os materiais necessários para produzí-las. Talvez Paulo as tenha destruído todas antes de sair de casa e, por isso, a sua demora. Talvez ele já pressentisse a monumental decepção que o aguardava e tomou as providências necessárias.
Mas cabe aqui uma outra interpretação do ocorrido, tendo qualquer um a liberdade de aceitá-la ou não: Paulo não era pintor. Paulo provavelmente nunca pintou um quadro sequer. Talvez toda a idéia de fazê-lo pintor tenha sido uma grande metáfora para a forma como nos relacionamos e como amamos. Desse modo, todos somos pintores. E todos já pintamos belíssimos quadros e acreditamos neles. E quando a beleza de um quadro se prova inadequada, a única resposta possível é suportar a decepção e pintar o quadro sequinte.
Pois bem. Paulo Quadros, às 6:05 da manhã do dia 18/09/2008, abriu seus olhos e, olhando para si mesmo, constatou algo terrível: sua tinta finalmente havia se esgotado.
Paeja
Há 4 meses
É Dario, Dario Marianelli.
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