Ando com um sentimento inédito ultimamente.
Inédito no que se refere a sentir, por que já ví esse sentimento aparecendo em algumas outras poucas pessoas e sendo retratado aqui e ali.
É quando você se sente cansado e frustrado com a sua própria cultura. Cultura no sentido amplo do termo: estou cansado da formação e da estrutura da cultura ocidental.
Ela é confusa, cínica, hipócrita, contraditória. Vivemos no mundo do prazer imediato, do estímulo a euforia coletiva, do fomento ao consumo e, simultâneamente, no mundo da culpa, da humildade e da temperança.
Em outros contextos históricos, o ocidente passou fome e quase ficou para trás na corrida das civilizações. Agora, nunca tivemos tanto alimento disponível e tanta abundância. E, nesse mesmo agora, vivemos no mundo do regime, do transtorno alimentar, da bulimia. A televisão alterna entre anúncios de lanchonetes, super mercados, marcas de cerveja e restaurantes para anúncios protagonizados apenas por pessoas magras, muitas delas vendendo aparelhos de exercício físico. Mas esse é só um exemplo. Somos convocados a consumir produtos altamente calóricos mas também a vê-los como O INIMIGO. Precisamos e temos o desejo de comer, mas também somos pressionados a não fazê-lo, com medo da balança e da rejeição. Nasce aí uma das várias contradições angustiantes: como e mato meu desejo ou me controlo em nome do ideal de magreza, sabendo que o desejo voltará várias vezes ao dia pelo resto da minha vida? Antigamente, agulhas, barras de ferro e cordas eram bons instrumentos de tortura. Hoje em dia, basta comer uma barra de chocolate. Nosso sistema econômico, conclui-se, é movido pela angústia e pela falta. Ele não seria possível em uma sociedade de pessoas satisfeitas.
E essa não é a minha questão principal. O fato da nossa cultura ter transformado o prazer de comer em tortura é só um simples incômodo. O que me incomoda mesmo, no geral, são contradições ainda mais profundas como, por exemplo, o "maniqueísmo" cristão. Por causa da nossa herança cristã, não conseguimos evitar de separar o mundo entre o bem e o mal. O bem, para destruir o mal, pode matar, atirar, ser violento e até roubar. É o que vemos nos filmes, nos livros, nos contos de fada, na TV e na nossa vida. Nos relacionamos uns com os outros de acordo com esses termos. Canonizamos e endemonizamos pessoas próximas a nós o tempo todo. Somos intolerantes com colegas, amigos, vizinhos, familiares e desconhecidos. Vivemos, sem admitir, em uma cultura violenta. Uma cultura de combate impiedoso e eterno ao mal. E os maus as vezes são pessoas que até ontem eram boas aos nossos olhos. Basta um erro ou as vezes um rumor, um boato e uma desavença para lidarmos com outros seres humanos como lidaríamos com demônios.
Tudo isso em uma cultura que se vê como pacífica, apoiada no exemplo de amor e de paz de Jesus Cristo. Contraditoriamente, a mesma cultura que celebra seu momento máximo na sangrenta cena de crucificação desse mesmo homem e que come sua carne e bebe seu sangue (simbolicamente) em rituais sagrados.
Eu vejo uma série de discursos endemonizantes conquistando cada vez mais adeptos com o passar dos dias. E não são discursos novos. São repetições de discursos antigos. A santa inquisição não é mais convocada pela igreja católica contra protestantes e quaisquer outro tipo de herege. Ela é convocada por partidos políticos e por novas vertentes do cristianismo, e seus alvos são outros comportamentos, outras religiões e outros grupos. Homossexuais, índios, sem-terra, nordestinos, etc. E os adeptos substituem ativamente discursos antigos pelos mais atuais.
Os alvos, por sua vez, vêem em seus algozes a face do demônio. Ambos, no fim das contas, enxergam o lado oposto como demoníaco, desprezível e indigno de qualquer salvação.
Eis que me deparo com meu problema. Senti-me endemonizado algumas vezes na minha vida, mas nunca havia vivido uma polarização tão grande e tão cheia de raiva e baixarias como a dessas últimas eleições. E, de repente, percebi onde eu estava. Eu estava de um dos lados, fazendo exatamente o que acusava meus opositores de fazer. Vendo-os como demônios, como imbecis e como indignos.
E percebi o quanto é difícil sequer colocar isso em perspectiva. No fundo, não deixei de vê-los com maus olhos. E me sinto frustrado por isso. E frustrado em perceber que a nossa cultura, ao contrário da imagem que ela hipócrita e cinicamente construiu para si, tem por base máxima a intolerância ao próximo.
Eu gostaria de não ser assim. Eu apenas imagino como seria viver em uma sociedade que ensina, de fato, a respirar e a se acalmar antes de responder a uma ofensa; a ler e examinar com atenção os vários pontos de vista antes de fazer um julgamento; a lidar amigavelmente com as diferenças e a entendê-las como contribuições; a conviver, ao invés de converter.
Paeja
Há 4 meses
"confusa, cínica, hipócrita, contraditória", por um momento achei que o texto era sobre mim! XD
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