quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Série Crônicas de uma cidade # 3

Paulo Quadros é um artista. Seu talento artístico sempre foi, desde novo, a pintura. Ele não sabia atuar, cantar, dançar ou tocar nenhum instrumento musical. Ele só sabia pintar e isso sabia fazer muito bem. Quando mais jovem, na altura de seus 8 anos, Paulo fez seu primeiro quadro: o de uma garota usando um belo vestido azul e com cabelos loiros e lisos. Essa, era Claudia. Aos 10, ele pintou Carolina, que tinha um sorriso realmente encantador e estava vestida como as garotas de sua idade, com uma saia e um arco colocando o cabelo - castanho e todo cacheado - para trás. Aos 15, pintou Bárbara. Aos 18, Ana Clara. Aos 21, Rafaella. A última obra fora Mariana, agora aos 31 anos. E ela é o quadro mais bonito, pelo menos na opinião do próprio autor, dentre todos os que ele já pintou.

Paulo Quadros acordou às 6:05 am do dia 18/09/2008, em seu apartamento e, ao olhar para a mesa em que seus materiais de pintura ficavam, constatou algo perturbador. Algo que causará a sua morte ainda hoje. Mas Paulo ainda não sabe disso. Ele está muito mais preocupado em tomar seu café da manhã, tomar um bom banho, escovar os dentes, se vestir e ir trabalhar. Ele ainda não se deu conta, a essa hora da manhã, do quanto se levantar não faria sentido algum, dado o que descobriu ao olhar sua mesa de materiais. Ele apenas sabe que hoje é um dia decisivo, mas ainda não precisamos falar o porque.

Paulo não é pago para pintar. Pintura é o que ele fez por prazer, por gostar, por um inclinamento natural. O verdadeiro trabalho de Paulo não aproveita em nada seu talento. Aliás, é justamente o oposto da atividade artística: um trabalho enfadonho que não demanda criatividade alguma para ser realizado. Aguardamos enquanto ele melancolicamente veste sua camisa social, acerta a gravata, veste a jaqueta do terno e pega as chaves para sair. Ele levará exatamente 32 minutos para fazer isso, simplesmente porque não sente vontade de fazê-lo. Então sairá de casa às 7:01 a.m. E o que o Paulo faz? Já não importa saber que é um trabalho desinteressante e melhor definido simplesmente como chato? Paulo pintaria seu ambiente de trabalho apenas em tons de cinza, se pudesse.

Vejam Paulo saindo de sua casa. Quando alguém o olha assim, com tanta atenção como nós, seja na rua, no trabalho ou pelo vidro de seu carro, jamais consegue imaginar o real talento dele. Por fora, ele aparenta ser um homem como qualquer outro, talvez até mais melancólico e sem graça que a grande maioria. Mas o que ninguém sabe é que o nosso protagonista possui um talento anormal, realmente espantoso.

Paulo não simplesmente pinta qualquer coisa. O tema de suas pinturas sempre foram, desde a primeira até a última obra, mulheres. Mas ele não apenas pinta essas mulheres. Ele cria seres humanos totalmente novos com seu talento. Essas mulheres não são apenas imagens estáticas feitas de tinta: elas possuem vida própria. Paulo é o único que conhece todas a fundo. Elas, como qualquer pessoa, são dotadas de uma personalidade única. Cada uma gosta de um certo tipo de música, de um número variado de filmes, de uns certos tipos de programas, de um certo estilo de roupas...Algumas gostam de teatro, outras gostam de poesia, outras sabem tocar algum instrumento e outras ainda também pintam, como Paulo. A única coisa em que todas elas se parecem é no fato de serem, aos olhos de seu criador, mulheres perfeitas.

Como já foi dito, hoje é um dia decisivo para o nosso protagonista. Há algum tempo ele começou a suspeitar de algo realmente assustador sobre si mesmo. Algo que comprometeria totalmente aquilo que dava sentido ao grande ofício de sua vida e à vida mesma: a arte. Suas suspeitas seriam confirmadas ou refutadas hoje e o resultado disso, como vocês já suspeitam, será de grandes conseqüências. Caso de vida ou morte, como diria algum não-tão-engraçadinho.

Agora são 7:45 a.m e Paulo está parado em uma fileira de carros, motos e ônibus, cheios de estudantes, de estagiários, de turistas e de pessoas atrasadas para o trabalho como ele. Como você já pôde notar, Paulo encara o engarrafamento com uma expressão triste e desanimada. Em um ambiente assim, ele não pode escapar de suas preocupações, que borram completamente o cenário estático e feito com tons de branco e preto para o qual Paulo encarava com olhos vazios.

Serão mesmo verdadeiras suas suspeitas? A dúvida revira o estômago de Paulo e inunda seus olhos. Ele poderia perder a única coisa em que realmente se considerava bom e que realmente fazia dele um homem único, marcante e genial. Seria sua alma, segundo o próprio Paulo, que estaria em jogo. E o desespero toma o controle do nosso protagonista a ponto de fazê-lo chorar, em plena luz do dia, em meio a um enfarrafamento no centro de Belo Horizonte, exatamente às 7: 51 a.m do dia 18/09.

Um rapaz, parado com seu veículo exatamente ao lado do de Paulo, assiste a cena intrigado e também preocupado. Ele abaixa o vidro da janela do passageiro e, sem pensar muito, diz:

"Ei...olha, eu não sei o que te aconteceu nem o que ta se passando. Mas me ensinaram, tem pouco tempo, que as coisas sempre melhoram se você conseguir esperar, viu? Força aí, cara! Isso vai melhorar!"

Paulo olha surpreso para o rapaz, sentindo-se estranhamente grato pelas gentis palavras do jovem, que não passa de um completo desconhecido. Outra coisa chama a atenção de Paulo em seguida: o carro do rapaz estava curiosamente amassado em sua parte dianteira, como se tivessem atropelado alguma coisa com aquele carro a pouco tempo. A gentileza desse desconhecido e o estranho formato da lataria amassada ajudaram nosso protagonista a vagar mentalmente por outros caminhos e, assim, distraídamente, chegar ao trabalho, cruzando os portões do estacionamento às 8:23 a.m.

Por quê hoje é um dia decisivo para Paulo e qual é a sua grave suspeita?
Enquanto Paulo sai de seu carro, pega o elevador e vai para a sua sala, em exatos 7 minutos, iremos responder a essas perguntas, finalmente.

A melhor resposta seria começar pela história de seu último quadro, Mariana. Paulo criou Mariana em um dia chuvoso. Quando a primeira imagem dela surgiu em sua mente, ela não era nada além de uma mulher muito atraente. Mas, aos poucos, Paulo foi se tornando cada vez mais íntimo de sua imagem, percebendo e empregando qualidades inerentes àquela beleza singular. Seus olhos, cheios de vida e cor, diziam a Paulo que ela também gostava de admirar os dias chuvosos. Sua pele, tão bem cuidada e perfumada, dizia a Paulo que ela era uma mulher sensível e carinhosa. Os cabelos, tão vistosos, diziam que ela inteligente, decidida e, principalmente, sofisticada. Seus lábios, tão bem desenhados, diziam que ela sabia se expressar muito bem e que sua voz era suave, limpa e agradável. Seus ouvidos, enfeitados sempre por um refinado par de brincos, diziam que ela não se divertia tanto em locais apunhados de gente, mas sim em locais calmos, com música leve. Suas mãos, delicadas e lisas, diziam a Paulo que ela era uma exímia tocadora de piano e ótima escritora. Mas o conhecimento dele ia muito além. Paulo sabia mais sobre Mariana. Soube que ela se perdia em sua imaginação ouvindo às melodias de Dario Marianelli; que ela também adorava dormir ao som de Cazuza e de Chico Buarque; que, ao ver um casal de idosos na praça, seu coração se enchia de esperanças; que ela achava graça de tudo e facilmente ria até enxarcar os olhos; que ela preferia cães a gatos; que ela sentia como se todas as mazelas do mundo estivessem sendo levadas em um dia chuvoso. Mariana era perfeita aos olhos de Paulo e, sem dúvida, a única capaz de fazê-lo feliz.

No presente, Paulo chega a sua sala, exatamente às 8: 36 a.m, e contempla - com o coração acelerado - a uma pequena pilha de cartas ainda embrulhadas pelo envelope em sua mesa.

Uma verdade precisa ser dita: Mariana, assim como as outras, não são apenas pinturas nos quadros de Paulo. Cada uma delas existe e fez parte da vida de Paulo.

Paulo, em sua sala, caminha em direção a sua mesa olhando, nervoso, a pilha de cartas. A última e mais recente delas, justamente a primeira da pilha, foi-lhe enviada por Mariana.

Em algum momento há meses atrás, uma terrível suspeita cruzou a imaginação de Paulo: a de que todas as mulheres que tenham sido pintadas por ele, sem excessão, não fossem exatamente como ele as havia concebido. Por uma razão que não cabe interpretar agora, tal pensamento trouxe ao nosso protagonista um incômodo indescritível, pelo menos não pelas palavras. Talvez algo em tons frios, melancólicos e sombrios nos trouxessem melhor uma idéia do que ele sentiu.

É por essa razão que Paulo, em sua sala, está, nesse momento, abrindo as primeiras cartas. Tratam-se de respostas para algumas perguntas que Paulo enviara a todas as mulheres que ele já havia pintado. Tais perguntas procuravam, apenas, conhecer os gostos, as preferências e as opiniões das versões reais de seus quadros.

Outra verdade deve ser contada: Paulo nunca conversou com nenhuma dessas mulheres. Ele apenas as viu, todas, em um ambiente de seu cotidiano. Cláudia, Carolina e Bárbara foram suas colegas de sala na escola; Ana Clara sua colega de cursinho; Rafaella, colega de sala em sua faculdade. E Mariana? Bom, essa ele apenas vira de relance, em um dia chuvoso, a esperar no ponto de ônibus. Nada mais. E ele conseguira, recentemente, a façanha de, depois de muito procurar e investigar, descobrir os endereços atuais de cada uma de suas musas, inclusive o de Mariana, cujo nome ele também desconhecia. Melhor não contar como ele realizou essa tarefa por não ser nossa intenção aqui lançar a Paulo qualquer mal julgamento, especialmente agora. Ele esperou até que a última resposta chegasse para, então, ler todas de uma só vez.

Paulo abre cuidadosamente a primeira carta. A resposta de Cláudia. Depois, trêmulo, a segunda, escrita por Carolina. Ele não fará nada além disso até às 13:30 p.m. Depois, às 13:31, Paulo finalmente se levanta, de posse de uma carta com o envelope não violado em mãos, dirige-se a janela de sua sala - que já estava aberta - e cuidadosamente sai por ela, primeiro se abaixando depois passando primeiro sua perna esquerda, depois a direita. Ele está de pé e apoiado, agora, apenas por um estreito degráu de cimento que fica logo abaixo de sua janela. Paulo olha para a cidade abaixo dele: poucos prédios mais altos e incontáveis pessoas, carros, motocicletas e ônibus a muitos metros abaixo dele.

"Isso sim daria uma bela pintura..." pensou.

E então, de acordo com o boletim oficial, após 3 horas de negociação frustrada, Paulo Quadros, de 31 anos, às 16:15 do dia 18/09/2008, saltou do décimo oitavo andar do prédio em que trabalhava. Ele fez isso após ler a última das cartas de sua mesa que, aliás, continuou em suas mãos durante o início da negociação com os bombeiros. Essa carta nunca fora encontrada pelos investigadores que cobriram o caso.

Nesse ponto, o leitor sente-se confuso. Teria Paulo se jogado apenas por ter descoberto que as mulheres pintadas não eram exatamente como ele as havia imaginado? Seria mesmo possível? De fato, a maioria das características imaginadas por Paulo, ou pelo menos as que ele considerava essenciais, não chegaram a realmente condizer com as respostas nas cartas. Isso nós já havíamos imaginado. Mas, ainda assim, não nos parece motivo suficiente. E não podemos nos esquecer que aquilo que causara a sua morte não fora, se voltarmos ao início desse relato, nenhuma das cartas mas sim algo que ele vira na mesa em que guardava seus materiais de pintura, logo pela manhã.

Na verdade, não há nenhuma boa explicação para um ato como esse aos nossos olhos. Portanto, nada do que se diga sobre Paulo poderá, algum dia, dar uma justificativa aceitável à sua decisão. Apenas um fato curioso: não foram encontradas nenhuma das pinturas mencionadas no apartamento de Paulo, muito menos os materiais necessários para produzí-las. Talvez Paulo as tenha destruído todas antes de sair de casa e, por isso, a sua demora. Talvez ele já pressentisse a monumental decepção que o aguardava e tomou as providências necessárias.

Mas cabe aqui uma outra interpretação do ocorrido, tendo qualquer um a liberdade de aceitá-la ou não: Paulo não era pintor. Paulo provavelmente nunca pintou um quadro sequer. Talvez toda a idéia de fazê-lo pintor tenha sido uma grande metáfora para a forma como nos relacionamos e como amamos. Desse modo, todos somos pintores. E todos já pintamos belíssimos quadros e acreditamos neles. E quando a beleza de um quadro se prova inadequada, a única resposta possível é suportar a decepção e pintar o quadro sequinte.

Pois bem. Paulo Quadros, às 6:05 da manhã do dia 18/09/2008, abriu seus olhos e, olhando para si mesmo, constatou algo terrível: sua tinta finalmente havia se esgotado.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Série Crônicas de uma cidade # 2

Antônio Martins abre os olhos e olha a sua volta, assustado. O relógio marca 6:14 a.m. Ele olha para suas mãos, para seu corpo por debaixo das cobertas e em seguida respira fundo. Ainda não acreditando no que parece ter descoberto, ele se levanta e corre ao banheiro. O espelho confirma sua suspeita. Antônio Martins acordou, as 6:14 a.m do dia 23/ 07/ 2009 e descobriu que estava velho. Ele, que sempre sonhou tanto enquanto jovem – como quando sonhou em ser astronauta, ou em caçar dragões ou em encontrar um tesouro – agora já não sonhava mais. E estava no alto de seus sessenta e dois anos, exatamente, pois hoje é também seu aniversário. Mas, ao contrário do que se poderia pensar, o nosso caro senhor Martins não está em clima de comemoração. Ele está assustado. É como se, em um dia, ele tivesse adormecido aos 22 anos, no máximo de sua beleza e saúde e, no dia seguinte, acordado com 40 anos a mais. Talvez ele tenha razão.

Antônio Martins irá acordar, pegar o seu jornal e sair de casa. Aposentado, um de seus passatempos favoritos é ler e fazer palavras cruzadas em uma das mais movimentadas praças de Belo Horizonte. Enquanto ele se levanta, lava o rosto, troca de roupa, come alguma coisa, pega seu jornal e sai de casa, podemos voltar 40 anos atrás e saber se Antônio Martins tem ou não razão para acordar assustado hoje.

Há 43 anos atrás, as 22:02 p.m do dia 18/ 04/ 1966, ele conheceu a garota de seus sonhos. Era uma jovem muito bonita, de pele branca, cabelos e olhos escuros, lábios carnudos e definidos, rosto muito bem desenhado. O coração de Antônio ficou acelerado assim que a viu e ela o olhou de volta e o fitou, por apenas 3 segundos. Não importa onde se encontraram nem o que disseram um para o outro nesse dia. O que importa é que aquela fora uma noite que seria lembrada com saudade por anos a fio.

O velho Antônio Martins está, inclusive, se lembrando dela, nesse exato momento. Ele está quase sorrindo, se você reparar bem. Voltamos a 2009 e são 6: 45 a.m. Ele está caminhando pelas ruas de seu bairro agora, indo em direção ao ponto de ônibus, com o jornal embrulhado, enquanto memórias desse dia começaram a brotar em seus pensamentos.

E não é por menos. Essa fora a noite em que ele conhecera Mariana Ribeiro. E ela fez brotar em Antônio pensamentos e sentimentos que ele jamais havia conhecido, apenas visto nas novelas e nos livros. Ela o fez, pela primeira e última vez em sua vida, sonhar com os finais felizes, com as paixões eternas e, por mais brega que isso possa parecer a você, que apenas acompanha tudo de fora, com o amor verdadeiro. E Antônio jamais deixaria esse sonho se esvair dele. No dia 06/ 05/ 1966, Mariana Ribeiro olhou em seus olhos e sorriu, após ouvir a pergunta: “Você quer namorar comigo?” Os dois se beijaram: o coração de Martins estava disparado. Depois disso, passados 3 anos de namoro, no dia que antecedia seu aniversário, 22/ 07/ 1969, ele tomaria a decisão que havia formulado em suas fantasias desde que Mariana o olhara de volta pela primeira vez. Ele faria um anúncio no jornal. Obviamente, não um anúncio qualquer. Antônio se lembra de, após colocado o tal anúncio – que só sairia no dia seguinte – ter voltado para casa e dormido como um bebê. Ele se lembra de ter deitado sua cabeça no travesseiro e possuir nada além de satisfação em seus pensamentos. Seu caminho estava claro, e com ele dormia a certeza de que tomara a decisão certa.

O nosso Antônio Martins do presente acordou hoje sentindo como se 40 anos tivessem se passado depois dessa noite. A noite em que ainda era jovem. Ele caminha lentamente, ainda se lembrando de tudo, em meio as pessoas que passam de lá para cá, de carros buzinando, de motoqueiros e de crianças indo para a escola e começa a enxergar o ponto de ônibus em que irá esperar. São exatamente 7: 18 a.m quando ele avista o ponto. Mas voltemos ao passado.

O jovem Antônio Martins abre os olhos. De supetão, as 6:14 a.m, ele se levanta, animado e nervoso. Ele sai de casa como uma bala, chegando a casa de Mariana Ribeiro exatamente às 7: 18 a.m. Ela o abraça, o beija, o deseja feliz aniversário e, finalmente, lhe pergunta o que ele fazia ali tão cedo. Ele, animado, pede que ela abra o jornal. Ela começa a abri-lo, às 7: 20 a.m. Ele pede que ela vá à sessão dos anunciantes. Ela o faz, sem entender. Mariana começa a passar o olho na sessão até que um dos anúncios faz seu coração pular. Um deles diz:

“Mariana, você quer se casar comigo?”

Ela olha assustada para Antônio, que acompanhava a cena com muita expectativa. Como fizera 3 anos atrás, exatamente as 7:21 a.m, Mariana sorri e então o beija. Antônio é tomado por uma felicidade sem tamanho. Ela e ele se casariam dali a 1 ano.

E lá está, novamente, o velho Martins se lembrando exatamente dessa época, dos ocorridos de 40 anos atrás, enquanto começa a abrir seu jornal, já assentado em seu ponto de ônibus, as 7:20 a.m. Ao seu lado, se assenta um homem com o ar afobado, vestindo um terno, de barba feita, cabelos penteados, relógio e sapatos caros. Antônio não conhece esse homem, mas está a ponto de mudar a vida dele sem saber. Esse homem é João Braga. E João está prestes a ver algo fantástico, em 60 segundos.

Mas não podemos deixar o passado como está. Infelizmente, existe uma mágoa que o velho Antônio Martins – que está calmamente lendo o seu jornal enquanto corremos por essas linhas – guardou e da qual precisamos falar antes que ele veja algo chocante.

A mágoa? Em um momento, de repente, no virar de um minuto para o outro, o jovem Antônio deixou de acreditar em finais felizes, em paixões eternas e no amor. Todos seus sonhos de infância também se esvaíram, pois ele havia acabado de crescer. Não nos importa como. O que importa é que, passados 20 anos de casamento, Antônio descobriu que Mariana Ribeiro o traía regularmente, e por muito tempo, talvez até tempos anteriores ao casamento. Com quem? Se fosse com o melhor amigo de Antônio, ou com seu chefe, ou ainda com um desconhecido – ou quem sabe com todos eles – também não nos importaria. O que importa é que, a partir do dia 12/06/1990, o jovem Antônio Martins deixara de acreditar em seus contos de fada e, assim, deixara morrer sua juventude, exatamente na virada das 23: 45 hrs para às 23: 46, no segundo 43. Os milésimos também não nos importam.

O que veio depois disso, espero eu, dispensa comentários detalhados. Apenas um tolo aceitaria continuar em uma relação permeada de mentiras e de traições. Apenas um tolo fecharia seus olhos diante dos próprios sonhos destruídos, de seu tempo perdido, da esperança morta. O que veio depois da traição descoberta foram papéis. Papeis que carregariam as assinaturas de Antônio e Mariana, tornando oficial a separação.

Passados 18 anos, Antônio presenciou algo que, sem sua consciência, mudaria a vida dele e a de João Braga definitivamente. Devo lembrar que – no presente – os dois ainda estão congelados, ainda no virar do minuto das 7: 20 para as 7: 21 a.m, no ponto de ônibus. Acontece que Antônio vira um homem, com seus 27 anos no máximo, decidir, após mais de 3 horas de conversas com a polícia e com os bombeiros, se jogar do alto de um edifício de 18 andares, no dia 18/ 09/ 2008, as 16:15 p.m. Ele o fizera após tomar coragem para abrir um envelope que esteve em sua mão ao longo do episódio inteiro e ler a carta que lá estava dobrada.

Antônio, que viu tudo da calçada, concluiu que jamais desistiria como aquele homem, não importava o quanto sua vida havia dado errado. Ele, que agora vive sozinho em um apertado apartamento no centro da cidade, sem filhos, amigos ou pais, enviou uma carta à Mariana, que dizia:

“Mariana, eu queria perguntar uma coisa. Você sempre soube o que eu sentia por você. Mas você, por outro lado, não parecia sentir o mesmo, já que precisou me trair por tanto tempo. Eu nunca entendi por que nos casamos, se era para você sair com outra pessoa e me iludir. Eu me lembro que, depois do dia em que eu descobri a sua traição, você chorou – e chorou muito – me pedindo perdão, dizendo que aquilo fora um erro. E eu descobri que o errado ali era eu. Você esteve errando por...20 anos? Errando em me trair ou em estar casada comigo, afinal? A verdade, Mariana, é que eu ainda amo você. E jamais vou me esquecer do garoto cheio de esperanças, sonhos e crenças românticas que eu me tornei e continuei a ser por 20 anos. Eu me dei conta, recentemente, que você nunca me disse mesmo se aceitava se casar comigo. Apenas sorriu. Então essa é a minha pergunta: Mariana, agora que você já sabe como eu sou, conhece meus defeitos, minhas qualidades, você seria capaz – se pudéssemos voltar atrás no tempo, naquele dia em que você viu o meu anúncio – de se casar comigo e de ser fiel a mim, acreditando, como eu acreditava, que somos almas gêmeas? O que você me diria, Mariana, se nós dois pudéssemos voltar no tempo?”

A resposta nunca veio. E ele, desde então, começara a sentir a certeza que havia trilhado o caminho errado. Que toda a dedicação e tudo o que tinha realizado em 40 anos de existência fora uma grande perda de tempo. A desesperança nunca o atingira tão forte quanto hoje, ao acordar no dia 23/ 04/ 2009.

E ali, exatamente às 7:21 a.m desse mesmo dia, folheando o jornal, o velho Antônio encontrou algo que talvez estivesse direcionado a ele, talvez não. Algo que talvez não passasse de um golpe publicitário ou de um código de um desconhecido para outro. Isso não nos importa, como também não importa a Antônio agora. O que importa é que encontrar aquilo, folheando aquele jornal, o surpreendeu. Demorando seu olhar sob aquelas letras, ele sentiu as lagrimas vindo, enquanto ousava pensar que talvez não havia desperdiçado sua vida. Ele sentiu o jovem alegre e apaixonado que uma vez ele já fora nascendo novamente e aquecendo seu peito. Ele se sentiu forte o suficiente para voltar a acreditar em suas antigas fantasias, seus sonhos desvairados e seus faz-de-conta. Ele não se sentia mais um tolo pela primeira vez em muito tempo. E Antônio, com muita alegria havia, naquele momento, voltado a ser quem ele nunca devia ter deixado de ser: alguém que cultiva belas esperanças e sonhos de juventude.

João Braga olhava atentamente, enquanto Antônio Martins, emocionado, lia um grande e destacado “SIM” colocado bem no meio do caderno de anúncios.

Não nos importa saber se esse SIM fora colocado ali por Mariana ou não. Sonhos não precisam acontecer para serem sonhados. Não nos importa nem se Antônio está ou não acreditando em uma mentira de propósito. O que nos importa é que Antônio começou esse conto como um senhor e o terminou como um jovem. O que nos importa é saber que o jovem finalmente encontrou seu tesouro. E que ele agora está bem.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Série Crônicas de uma cidade # 1

João Braga acorda renovado. Hoje parece um recomeço cheio de possibilidades promissoras pra ele. O dia é 23/ 07/ 2009, e são 6:25 a.m, em Belo Horizonte. Ele se levanta e faz a barba que, cá entre nós, já estava ficando grande o suficiente para qualquer um notar o desleixo com o qual João havia se tratado nos últimos meses. Ele toma um banho frio, bem frio. É pra deixá-lo atento, ligado, bastante esperto. João espera muito do dia de hoje e nada pode dar errado. Ele coloca o seu melhor terno e, finalmente, sai de casa, precisamente às 6:56 a.m.

Enquanto João caminha até seu ponto de ônibus, aproveito pra contar a história dele, que definitivamente não começa com ele acordando no dia 23 de julho e muito menos no ano de 2009. É melhor que a história dele comece pelo dia 11/04/1989, às 16:11 p.m. E começa com seu coração batendo forte, muito forte, logo após ter ouvido "Deu positivo...tô grávida". Quem disse isso foi Sibele Moreira, que era sua namorada ha 2 meses. O caso deles é engraçado: diferentemente de outros casais, quem se aproximou e se insinuou primeiro fora Sibele. João resolveu ver no que aquilo ia dar e começaram um relacionamento. Depois da gravidez, os Moreira não deram escolha a João senão assumir a relação perante a Deus e aos homens, consagrando essa união por meio do sagrado matrimônio. E assim foi. Se casaram, no dia 08/10/1989. Mas voltemos ao presente.

João já chegou em seu ponto agora, que não tinha muita gente assentada, a não ser por um senhor de idade, lendo um jornal. São exatamente 7:21 a.m quando algo fantástico começa a acontecer, bem na frente de João. O senhor começa a cair em prantos, com o jornal aberto. João não consegue tirar os olhos daquela cena curiosíssima. Ele não sabe a razão do choro já que não consegue ver o rosto do senhor por detrás do jornal. João fita atentamente a cena quando o senhor, notando João, finalmente abaixa o jornal e, com uma expressão que esboçava uma felicidade jovial, lhe diz: "A vida sempre supreende a gente, né? A gente num pode é desistir, nunca. Nem um velho como eu...." João sente empatia imediata por aquele senhor e pelas palavras inexperadas. Ele vai responder quando nota que seu ônibus acabara de chegar. Ele precisa ir, e acaba não dizendo nada. Mas sua mente não abandona a cena: "O que aquele senhor poderia ter visto em um jornal que lhe trouxe tanta alegria? Será que ele descobriu ser o novo ganhador da loteria? Ou por terem descoberto a cura para alguma doença? Ou ficou muito aliviado com alguma notícia boa no jornal? Realmente, hoje em dia só se fala em tragédia nos jornais...."

Enquanto João pensa sobre o que viu e viaja de ônibus, voltemos à sua história. Sibele e João, tiveram sua filha, a pequena Anna Moreiro Braga, no dia 15/12/1989. Foi um grande dia na vida de João. De lá pra cá, todos os outros dias foram recheados de muito trabalho e de muitas reclamações, primeiro da mulher, chamando-o de relapso e, mais tarde, da filha, que havia aprendido a reclamar desde cedo com a mãe. João arrumara um emprego na agência de seu sogro, Eduardo Moreira. Eduardo, desde que conheceu nosso protagonista, sempre gostara dele. Eduardo, inclusive, por simpatia, insistia na presença de João nos jantares de família, pois queria se aproximar dele, tornar-se amigo. Quando a notícia da gravidez veio, ela soou como uma garantia aos ouvidos de Eduardo de que a amizade seria eterna. Tanto que ele tratou de dar um ótimo cargo a João, em sua agência de publicidade. João era um homem bem casado, com uma belíssima filha, um sogro simpático e um ótimo emprego. Voltemos ao presente dele, já que ele acaba de chegar na mesma agência que acabamos de citar, a de seu sogro Moreira.

João observa o grande sagão decorado em mármore daquele edifício. Fazia tempos que ele não visitava o lugar e olhá-lo agora o fazia parecer mais bonito do que ele jamais se lembrava. Ele pega o elevador, até o oitavo andar, e entra em seu tão conhecido ambiente de trabalho. Alguns de seus colegas notam que ele chegou e começam a cochichar. João começa a se sentir ansioso com a situação e seu coração começa a bater mais rápido. São exatamente 8:03 a.m quando João percebe que sua antiga mesa fora ocupada por alguém. Um outro funcionário, do qual ele não se lembra de jamais ter conhecido. Seu coração, agora aos pulos, tenta se acalmar enquanto ele pede à secretária de Eduardo Moreira um horário rápido para uma breve conversa. João se assenta no sofá da sala de seu chefe, e tenta se acalmar, enquanto seu relógio de pulso acaba de marcar 08:30 a.m. Ele tenta se convencer de que não está tudo perdido.

Enquanto João espera para falar com seu chefe, voltemos ao seu passado, que já se aproxima de seu presente. João vivia ouvindo de sua esposa que ele não lhe dava atenção, não lhe dava carinho, não prestava atenção a sua filha. Ele tentava mudar, mas a quantidade de trabalho era enorme e o chefe, apesar de adorá-lo, muito exigente e rigoroso. Tudo se manteve assim até o dia 02/04/2009, em que sua mulher, aos gritos, exigia o divórcio e saía de casa com malas feitas, levando Anna consigo. João se deprimiu. Passou os 3 meses seguintes lidando com o choque, com a tristeza e com a culpa pela situação em que estava. Ele nunca imaginara que tudo acabaria em divórcio. Sua depressão foi tamanha que João não ia mais ao trabalho: olhar para Eduardo apenas lhe apertava mais o coração. Mas, passados 3 meses, João, finalmente, no dia de hoje, resolvera recomeçar sua vida, esperando que Eduardo, que sempre lhe foi tão generoso, daria seu emprego de volta. Mas João só ficaria tranquilo depois de conversar com Eduardo e reconquistar sua antiga posição.

A atendente avisa a João que tem permissão para entrar. João entra na sala do chefe, tendo o cuidado de fechar a porta atrás dele. Por um momento, aliás, por exatamente 5 segundos, João e Eduardo se entreolham, como que surpresos um com a presença do outro. O coração de João está disparado. Ele toma ar para começar a conversa, quando é interrompido: "Você veio buscar as suas coisas? Eu separei tudo aqui pra você, e guardei na minha sala." João então sente seu mundo desabando, novamente. Ele havia perdido o emprego e nem sabia disso. Ele devia ter esperado por isso. Aliás, suspeita até que uma carta sobre o assunto lhe fora enviada, mas ele estava deprimido demais pra se importar com qualquer correspondência. Ele então resolve esconder o fato vergonhoso de ter se aprontado daquela forma por nada. Envergonhado, ele pega a caixa das mãos de seu ex-chefe e ex-sogro e se vai, sem conseguir dizer uma palavra sequer.

No caminho, passa na lanchonete da empresa, e compra um bolinho de chocolate com um recheio delicioso de trufa, que ele sempre comia após o almoço. Seria o último daqueles que ele comeria. São exatamente 8: 43 a.m quando João fita sua tão amada sobremesa, envolta em um saquinho de plástico, que sempre fazia um barulho agradável aos ouvidos ao ser aberto. Estava longe do horário de almoçar mas aquilo serviria como um ritual de despedida.

Exatamente as 8: 47 a.m, quando João olhava para o bolinho em suas mãos, após ter saído finalmente do edifício em que trabalhara por tanto tempo e dado 8 passos na calçada, sua vida mudou completamente. Ele fora roubado. Um trombadinha passou, correndo muito rápido, viu o bolinho nas mãos do distraído João e não pensou duas vezes em tomá-lo de suas mãos. A destreza do rapaz foi tanta que João precisou de exatos 3 segundos pra se dar conta de que seu bolinho fora tirado dele e se virar para olhar quem tinha sido. O menino, que já estava embalado, corria rápido e logo sairia da vista de João. Nesse momento, nosso protagosnista foi tomado por uma fúria colossal, algo que tomou seu corpo completamente, alterou todos os seus sentidos, mudou tudo. Algo que João nunca havia sentido estava emergindo bem ali, gritando pra sair. Ele dispara atrás do garoto. Pessoas são empurradas e jogadas longe quando João, que não sente dificuldade nenhuma em tirá-las do seu caminho, passa enfurecido. O garoto olha para trás e se assusta: o dono o estava perseguindo para reaver o doce roubado. O menino aumenta seu rítmo, embora já estivesse cansado de correr. João, por outro lado, sentia como se estivesse assentado na beira de uma piscina de clube, e que poderia correr por dias se fosse necessário. Para ajudar na corrida, ele se livrou de sua gravata e jogou sua pasta, cheia de documentos, no chão.

O garoto, tentando evitar que a corrida continuasse, resolve entrar para uma favela próxima, exatamente as 9: 25 a.m, que não era a que ele morava, mas que sem dúvidas seria o bastante para assustar seu perseguidor e fazê-lo dar meia volta. O garoto não poderia estar mais enganado. Os morros da favela o cansaram mais e João tinha menos obstáculos para perseguí-lo agora que não estava em uma avenida movimentada. O garoto está apavorado: ele entrou em um território que não conhece e um homem maluco, com nada além de ódio no rosto, o seguia incansávelmente, não importasse qual devio ele tomasse, qual manobra evasiva ele adotasse. O homem agia como se conhecesse aquela favela melhor do que ele ou como se um radar estivesse grudado em suas costas. Por fim, o garoto deixa cair o bolinho e continua a corrida, as 9: 45 a.m.

João encontra seu bolinho no chão, ainda protegido pelo plástico. Ele para imediatamente. Se aproxima e cai de joelhos olhando o bolinho enquanto recupera seu fôlego. Todo o cansaço agora se faz notar. Seus músculos estão queimando, sua cabeça está tonta, e seu coração, disparado. E foi nesse momento que João começou a chorar, e chorar muito. Alguém que visse a cena veria um homem de terno, completamente suado, com seus 40 anos, ajoelhado de frente para um bolo de chocolate, no chão, aos prantos, no meio de uma favela. Mas veria que João não chora de tristeza, nem de desespero. João chora de alegria, uma forte e sincera alegria. Ele entendeu finalmente qual havia sido o caminho que trilhara até aquele dia, e entendeu também que ele fora completamente transformado naquele momento. Pela primeira vez em sua existência, João havia lutado com todas as forças contra um dos vários golpes inesperados da vida. Ele aceitou namorar Sibele por parecer o mais fácil e certo a fazer; aceitou casar-se pelo mesmo motivo e aceitou o emprego na agência pelo mesmo motivo. Aceitara tristemente o pedido de divórcio, sem saber como protestar ou lutar contra a decisão de uma mulher com o temperamento tão forte como Sibele. Aceitara, inclusive, perder o emprego sem lutar por ele, considerando ser uma causa perdida. João, pela primeira vez na vida, não se sentiu uma causa perdida. Ele descobriu que podia lutar até o final para conseguir o que quisesse, mesmo indo contra todas as possibilidades. Ele entendeu as palavras do senhor no ponto de ônibus. Ele jamais desistiria outra vez, a partir daquele dia. E é assim que acaba uma história de João. Uma história de fracassos e de mágoas. Mas também é assim, exatamente às 9: 47 a.m, do dia 23/07/2009, que outra história, cheia de decisões arriscadas, de luta, de conflitos, de decepções, mas também das mais grandiosas alegrias, começa. E é aqui que abandonamos João. Ele já não precisa mais de nós.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Filosofia de viagem


Olá!



Acho que é mais do que comprovada a existência e, inclusive, a recorrência de um certo fenômeno: a filosofia de viagem.

Tratam-se daqueles momentos em que você, seja dentro de um carro ou de um ônibus, começa a pensar na vida, nas questões essenciais, nos problemas, nas soluções e, quem sabe, uma epifania possa surgir.

O relato de hoje não é, apesar da introdução, uma epifania advinda de uma filosofia de viagem. É, pelo contrário, o relato de uma linha de raciocínio que foi jogada em uma direção completamente difente, dadas as circunstâncias.

São 23: 30 p.m.

Um rapaz dirige seu carro calmamente pensando sobre a vida. Ele está no começo do percursso. Sua mente vai divagando entre trabalhos a serem entregues, coisas a serem ditas a amigos, problemas a serem resolvidos, quando - a uma hora dessas - um homem de idade avançada lhe pede dinheiro no sinal. Ele tem um aspecto fantasmagórico.


Isso lhe faz pensar sobre aquelas pessoas que colocam saquinhos - que sempre têm mensagens religiosas impressas - com poucas balas em cima dos retrovisores dos carros nos sinais vermelhos. Primeira dúvida: quem imprimiu essas mensagens para eles? Segunda dúvida: Se eles precisam ganhar a vida nos sinais, devem ter pouquíssimas condições econômicas. Será que eles, portanto, fizeram algum tipo de acordo com seja-lá-quem-for que escreveu aquela mensagem religiosa? Terceira dúvida: No caso de um acordo, os lucros são divididos? Quarta dúvida: É realmente possível viver vendendo balas no sinal? Quinta dúvida: Quem são essas pessoas e como elas gastam o dinheiro que arrecadam? Serão pais de família, por exemplo? Mas essa divagação, como vocês verão, se perderá pelo que vem a seguir.


De repente, algo interrompe os pensamentos do rapaz. No sinal seguinte, uma mulher muito bonita, de cabelos loiros, pele lisa, lábios, olhos e rosto muito bem feitos, parando o carro ao lado do dele, começa a olhá-lo fixamente. Ela, no entanto, não olha como uma mulher interessada em alguém. Não sorri, não mexe no cabelo, porem não desvia o olhar. O rapaz começa a pensar que ela viu algo de muito errado nele, talvez uma sujeira em seu rosto. Mas ela não o olha como se algo de errado tivesse sido encontrado: ela apenas o olha, fixamente, talvez como apenas um fantasma.

Pelo vidro do banco de trás do carro dessa mulher, o rapaz nota que um taxi também está parado no sinal. Seus dois passageiros, um careca e uma mulher de cabelos longos, muito pretos, discutem um com o outro, vociferando, quase se agredindo.


Dúvidas: O que aquela mulher tanto olhava? Será que, ao olhar o rapaz, ela se lembrou, quem sabe, de um ex namorado? Parece não ter tido um final feliz, esse relacionamento. Vai ver, terminou em assassinato. Resta saber de quem: seria a mulher uma assassina ou realmente um fantasma? Outra dúvida: qual seria o motivo da discussão do casal do taxi? Pra brigarem desse jeito dentro de um taxi, a coisa devia mesmo estar séria. Será que a mulher cometeu adultério? Será que eles retornavam de um jantar frustrado e cheios de gafes terríveis com as famílias de ambos? Será que a briga continuaria ao descerem do taxi? Até onde chegar essa discussão tão agressiva?


O rapaz segue. Já está na metade do percusso. Ele se assusta: um carro, mais amassado que uma lata de refrigerante depois de ser pisoteada, bloqueia duas pistas de seu caminho. Algumas pessoas estão em volta do acidente e, para sua surpresa, ele consegue ver nitidamente que três delas conversam aos risos.


Dúvida: Como alguém pode rir em uma situação dessas? Estariam essas pessoas realmente envolvidas com o acidente? Não pareciam, pelos trajes e pelo horário, transeuntes curiosos. Seriam essas pessoas paretes do acidentado? Houve alguma vítima fatal? Seriam eles, portanto, inimigos do recém falecido no acidente? A ponto de rirem enquanto fitam a destruição do veículo de seu inimigo?


O rapaz continua. Já está próximo de casa. Sua atenção é tomada por um homem fazendo cooper na frente de um cemitério.


Dúvida: Por que alguém, às 23: 55, faria exercícios fora de casa e, pior, passando na frente de um cemitério? Seria esse homem, na verdade, o fantasma do falecido do acidente de outrora que, com pressa para ir ao outro mundo, o fazia correndo? Seria ele um fantasmagórigo amigo da loira macabra que, de tanto olhar, parecia nem piscar? Seriam os dois um sinal de mau presságio?


O rapaz segue, agora temendo se juntar aos outros dois. Já está quase em casa. Novamente, algo toma sua atenção: uma mulher de idade avançada, encobrida por roupas pretas - possivelmente um cobertor - esperava, sozinha, no ponto de ônibus. Ela foi vista de relance mas, dadas as circustâncias, fez a mente do rapaz novamente degavar.


Dúvida: Quem abriu as portas do mundo dos mortos?


Finalmente, o rapaz chega ao seu destino. Chega e se pergunta: "Será que algum dia vou descobrir a resposta de alguma das perguntas que me fiz hoje? Possivelmente eu tenha que levar essas dúvidas para o túmulo."


Muito apropriado. Dessa forma, quem sabe, você, rapaz, poderá perguntar pessoalmente a cada uma das almas penadas - a loira, o corredor e a senhora (e talvez o primeiro senhor) - o que resolveram fazer tão tarde (ou talvez tão cedo, no horário dos mortos) no meio da rua.

Existe a remota possibilidade de não serem almas penadas. Mas ela é prontamente afastada pelo rapaz, que parece se divertir imaginando que realmente pôde, por uma noite, ver gente morta.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Onde encontrar a felicidade.


Olá a todos.



Eu tive um leve bloqueio em relação ao blog ultimamente. Mas eu tinha uma boa idéia sobre o que poderia ser o meu próximo post. Idéia que já me tem visitado a muito tempo: falar sobre a felicidade.


_ Como assim?


A minha própria. Eu me considero, de verdade, uma pessoa muito satisfeita com a vida que leva. Eu sou alguém com uma ótima casa, família cuja presença me alegra, alguns ótimos amigos. Encontrei algo que eu realmente gosto de fazer e tive a oportunidade de fazê-lo assim que pude. Tive a mais que privilegiada sorte de nascer com a condição de pagar por uma terapia psicanalítica, que tem me levado a pensar sobre tudo o que eu faço, penso e fantasio faz mais de 4 anos.

E se tem algo que eu aprendi - depois desses 4 anos - é que você pode ser feliz e se sentir leve com a sua própria existência. Basta aceitar algumas coisas, tais como: somos todos falhos, não temos o controle de quase nada que nos ocorre, nunca teremos tudo o que desejamos, nada dura pra sempre, alguns problemas simplesmente não poder ser solucionados como queremos e as coisas nunca sairão como nós planejamos, com algumas raras e chatíssimas excessões. O último ítem, por sí só, deixa a vida inteira com um ar imprevisível que a torna amarga e doce, ao mesmo tempo. O belo não existe sem o feio, como a própria felicidade não pode existir sem a tristeza.

O que muda, radicalmente, o rumo desse post. Se a felicidade não pode existir sem a tristeza, então este é, essencialmente, um texto sobre a tristeza. Sim, é verdade. O caso é: se alguém realmente aceita os termos acima, ele pode viver em uma condição - muito recomendável - de auto-absolvição. Nesse estado, uma pessoa consegue se aceitar apesar de suas feiúras, seus defeitos, seus pecados. Não que ela não procure melhorar, não me entenda mal, mas o peso da culpa e da decepção por não sermos exatamente o que gostaríamos ser - um ideal sempre estratosférico - deixa de pesar tanto. Se é possível ser feliz, pelo menos que eu possa imaginar no momento, o caminho a ser seguido é: auto-aceitação e amor próprio.

Batido, brega, piegas. Chame como quiser. Mas me parece muito verdadeiro. O que também me parece verdadeiro é que tal caminho oferece alguns efeitos colaterais NO MÍNIMO engraçados. Ser alguém que não tem problemas consigo é ser alguém que não quer criar problemas com os outros.

E adivinhem? Isso é extremamente incômodo ao resto do mundo. Veja você: o mundo é dos que se importam com a vida alheia, dos que têm um problema com o outro, dos que sabem jogar, dos que dão o primeiro tiro, dos que fazem calúnia temendo ser caluniados. Eu poderia me extender dizendo que: o mundo pertence aos que julgam temendo o julgamento, aos que caçoam temendo que seus defeitos lhes sejam expostos, aos que atacam por serem covardes.

Se você estiver em paz consigo mesmo, saiba que essa paz parecerá qualquer coisa aos olhos dos que têm problemas, menos o que ela realmente é. Eles dirão que você é falso, convencido, estranho, suspeito, egoísta, imoral, perigoso e/ou louco. Eles precisarão atacá-lo, perturbar a sua paz e colocar você em dúvidas se devia continuar a corresponder ao seu tão incômodo amor próprio. Afinal, como a doutrina cristã - pra não dizer no próprio exemplo do nosso excelentíssimo Senhor Jesus Cristo - nos ensina, não parece correto buscar felicidade na vida terrena, já que seguramente existe uma pós-vida repleta de promissoras alegrias. Mas prometida apenas aos sofredores. Portanto - e só deus sabe ao certo - talvez eu devesse agradecer a qualquer um que me tirasse o bom humor. A cada sorriso de alegria arrancado por um mal julgamento, uma fofoca infundada, uma injustiça e uma falta de respeito, subimos mais um degrau na escada que leva ao céu. Se o mundo pertence aos sofredores e aos problemáticos, que empreitada desvairada é essa de realmente ser feliz?

Mas persiste um paradoxo. Se existem a tristeza e o sofrimento no mundo - e ambos podem ser tão profundos - então eles necessariamente reafirmam que também existem - no mesmo mundo - a alegria e a felicidade em igual profundidade. Não é verdade que não é possível existir tristeza sem também haver felicidade? Tal como o amargo, que de tão amargo, só faz adoçar o que já é doce?

Isso faz do mundo, inesperadamente, um lugar em que uma grande alegria possa de fato ser alcançada. Eis aí a grande glória.


Esse acabou se tornando um post feliz, afinal.

domingo, 7 de junho de 2009

A relação com o silêncio


Olá a todos.



Eu tive uma grande revelação a menos de duas horas do atual momento em que escrevo. E aqui vai: não posso escrever sobre o que eu quero. Sobre o que eu REALMENTE gostaria. Algumas coisas me prendem, como a minha profissão e as minhas relações em geral. Vejam vocês o paradoxo: para escrever o que gostaria, eu precisaria de um pseudônimo. Dessa forma, não existiria mal algum. Tanto que, por consequência, ninguém se incomodaria em ler. Seria um estranho falando sobre outros estranhos. E isso não teria propósito algum. Seria como um divã de psicanalista que, por acaso, eu já tenho disponível a um preço extremamente salgado.

Uma saída seria escrever em metáforas. Outro beco sem saída: não me entenderiam ou, PIOR ainda, alguém poderia realmente entender. E aí sim a coisa ficaria feia.

Imaginem, por exemplo, se eu pudesse comentar tudo o que vejo, sinto e penso sobre o meu trabalho. Algumas coisas, as boas, eu posso dizer. Mas não terá a menor graça, já aviso. Por exemplo, meus colegas de trabalho, os outros professores. Nenhum deles me deixou uma impressão nem levemente ruim. Todos me parecem competentes no que fazem em sala de aula e, fora dela, todos são realmente inteligêntes, bons de conversa, simpáticos. Chato, não?

Agora, por exemplo, imaginem se eu comentasse sobre as fofocas das vidas dos alunos? Não aquelas fúteis, mas as realmente cabeludas? Isso sim interessaria, não é? Bom, não posso nem nunca tal assunto estará em pauta. Talvez uma metáfora sobre isso aqui e ali, mas nada além disso. E, acreditem, alunos são uma fonte incrível de muitas coisas: afeto, risadas, encheção de saco, carinho, frustração e até raiva.

Imaginem também se eu me pusesse a comentar sobre as últimas notícias chocantes sobre a minha família, por exemplo? Sobre barracos, desentendimentos, tragédias - enfim - tudo o que todos querem saber? Também inadequado e espero nem precisar me estender sobre as razões disso.
E o que essa imagem tem a ver com o post? Ah....bom, até onde eu saiba, caveiras não são de falar muito. Só aquele inimigo do He-Man.

Outro bom assunto: fofocas sobre meus círculos de amizades. Quem fez o que com quem, quando, como, onde. Ou algum post desaforado, com algumas leves insatisfações sobre alguns deles. Eu poderia escrever sobre isso? Mas é claro que não, imaginem a confusão. Em pouquíssimo tempo, eu num teria nem amigos mais pra comentar aqui, mesmo falando sobre poucos - o que assustaria o resto.

Essas e outras frustrações, reclamações, fococas, sentimentos e pensamentos em geral precisam ficar aos ouvidos apenas da minha analista. É uma pena. Eu adoraria dividí-las com o mundo. Mas não se pode dizer o que quer sem arcar com as consequências indesejadas, não é?

Portanto, aqui termina meu longuíssimo post sobre - nada mais, nada menos - o ato de não dizer nada.

domingo, 31 de maio de 2009

A relação com a Moral


Olá a todos.



Eu desejo fazer um post menos carregado de emoção do que o anterior. Escrever assim, carregado demais por um sentimento só, pode trazer más consequências.

- O que? Descobriram de quem você falava? Deu confusão?


Claro que não. A má consequência é a minha impressão de que eu poderia ter dado um final melhor ao post. Mas, ao mesmo tempo, saiu como saiu. Me expressei como deu na telha e não quero voltar atrás.

Me resta falar de outro tema que, no exato momento, é tema de análise e motivo de desconforto: a moral de cada um.

Eu, por exemplo, não sou nenhum santo: já faltei com a verdade, já enganei, já omiti, já prestei falso testemunho. Mas, acreditem ou não, meus atos seguem uma lógica, que vai de acordo com a minha moral: a de não causar sofrimentos desnecessários.



Eu tenho pra mim que aquilo que chamamos de "verdade" é uma ótima forma de causar uma dor rápida e duradoura a alguém. Principalmente se esse alguém, por acaso, gostar de quem somos, do que fazemos, da amizade que oferecemos.

Talvez as pessoas fiquem assustadas demais em imaginar que não sabem nem da metade do que se fala sobre elas por aí. Em pensar que não possuem controle nem ciência do que se pensa e se sente sobre elas. Você já notou o quanto fala sobre os outros, em uma turma de amigos? E o quanto, muitas vezes, o assunto se volta justamente para a pessoa que acaba de sair da mesa? E você pensa mesmo que não falam as mesmas coisas sobre você? Uma roupa mal escolhida, uma frase mal interpretada, um gesto de má educação, uns quilinhos a mais. Enfim, fofoca. Você precisa mesmo saber de tudo que falam sobre você? Melhor não. Por que você, afinal, nunca vai saber. E realmente não precisa. As pessoas que dizem o que dizem não deixarão de gostar de você pelos quilinhos a mais, pela roupa mal escolhida ou por qualquer outro motivo - não sendo o motivo algo realmente grave. Portanto, saber disso causaria sofrimento, incômodo e, por outro lado, não traria bem algum, excluíndo-se a chance de ser algo passível de mudança.

O ponto é: não precisamos ser sinceros 100% do tempo com ninguém, muito menos precisamos que o sejam conosco. Isso não atrapalha a convivência entre as pessoas e, aliás, a facilita.


A moral da qual falo, portanto, não será essa pequena moral dos igualmente pequenos egos que apenas querem saber do que se fala por aí sobre eles. O meu objeto é a mentira da sua forma mais violênta: a mentira entre amigos. A hipocrisia que ganha território não levada através da simples lábia ou do desejo de salvar ouvidos sensíveis de pequenas e incômodas verdades, mas aquela que segue através da confiança sincera que lhe é entregue. Falo do tipo de moral que, de fato, não se importa com o outro. Falo de alguém que mente e conta versões diferentes do que se passa cada amigo, pra simplesmente evitar que seus erros sejam descobertos.(1) Falo de amigos que invejam outros amigos, que secretamente lhe desejam mal, expõem seus defeitos a desconhecidos, pra se sentirem melhor.(2) Defeitos que os deixamos ver, por serem nossos amigos, por querermos lhes dar nossa confiança.

Falo do pior tipo de pessoa: da pessoa verdadeiramente imoral. Daquela que não segue, nem ao menos, uma moral interna e coerente com qualquer princício senão o do interesse próprio e a vontade infantil de se sentir sempre bem, a qualquer custo. Falo do amigo que julga mal seus amigos e confidentes. Falo daquele que espalha a discórdia.(3) Daquele que, enfim, não é amigo. Mas a quem entregamos de bom coração, em algum momento, a nossa sincera confiança. A quem fizemos o maior elogio sincero que uma pessoa pode fazer a outra: chamar de amigo.


Mas que, infelizmente, é hipócrita até consigo mesmo, a ponto de acreditar piamente que o é.


Uma dica: eu, nesse texto impróprio, me referi a 3 amigos diferentes. Se você, que me acompanhou até aqui, acha que sabe quem algum deles seja, provavelmente você acertou.

Se você leu e por acaso sentiu que eu falava de você, mas ficou na dúvida, pode ter certeza: era mesmo de você.

Outra dica: agora ficou na dúvida, né?

quinta-feira, 28 de maio de 2009

A relação narcísica


Olá a todos!


O post de hoje, extremamente impróprio do ponto de vista ético, terá alguns personagens importantes que serão, de imediato, apresentados:


- Maria, um codenome para uma amiga com quem tenho ótimas conversas, quando não estamos brigando.

- Sr. sem limites 1 - jovem sem limites, muito inconveniente e ex aluno.

- Sr. sem limites 2 - outro jovem sem limites, muito agressivo e também ex aluno.

- Paulo, codenome para um rapaz muito tímido e quieto mas que nunca, que eu tenha visto ou tenha qualquer notícia, tenha feito mal a ninguém. Dizem as más línguas que ele é bacana até com as moscas.

- Eu, que não vou fazer o papél ridículo de me apresentar de novo.

- Sigmund Freud - conhecido por muitos como "pai da psicanálise", criador da teoria do narcisismo pela qual orientarei todo o presente post.


Outro dia, eu estava a conversar com Maria quando ela me disse algo que ficou na minha cabeça. De acordo com seu relato Maria, aparentemente, só consegue - ou pelo menos encontra enorme facilidade para - fazer amizades com pessoas excluídas. Talvez eu, na minha prepotência habitual, tenha esquecido de notar que, portanto, estou INCLUÍDO na classificação de EXCLUÍDO, visto que somos amigos. Esqueça isso, não é o nosso ponto.

Maria contou que nota pessoas que obviamente terão problemas em se ajustar e em serem aceitas socialmente e se sente irrevogavelmente afeiçoada a elas. "Essa é das minhas" - pensa Maria, ao ver uma criatura potencialmente excluída. Ela se aproxima e....dito e feito. Uma nova e bela amizade surge.

Não pude deixar de entender Maria. Eu mesmo, nos tempos de escola, sentia simpatia pelos infelizes dos excluídos. Não que eu construísse profunda amizade, andasse com eles no recreio ou os visse nos finais de semana. Não chegava a tanto. Mas meu sangue fervia quando, por exemplo, um playboy mimado queria se exibir pros outros mauricinhos por meio da ridicularização de alguém visivelmente indefeso. Mais de uma vez, na minha vida escolar, eu já estive a ponto de entrar em brigas com mauricinhos por causa disso ou, pior, acabei entrando. Minha sorte é que os mauricinhos, orgulhosos, nunca contam pra diretora quando apanham. Meu azar é que, como todo garoto mimado e sem limites que se preze, eles são covardes por natureza e, portanto, convocavam suas gangues de "amigos" para tentar me dar o troco mais tarde. Eu tenho saudade da escola.

Eis que, a pouquíssimo tempo atrás, questão de horas, algo que me recordou os meus tempos de menino e a minha conversa com Maria aconteceu bem na minha frente. E aconteceu quando eu estava a conversar com Paulo, que além da apresentação acima, ainda merece mais elogios: é muito simpático comigo, sempre faz questão de se levantar e de me cumprimentar quando eu chego no mesmo ambiente em que ele está e, ainda, é um estudante muito esforçado. Eu admiro isso.

Pois bem, eu conversava com Paulo quando os Srs. Sem limites 1 & 2 apareceram, atrapalharam nossa conversa, querendo roubar a atenção e, pro meu horror, o sr. sem limites 2 ainda espirrou limão bem nos olhos de Paulo. Paulo, acreditem ou não, estava justamente estendendo a mão para cumprimentar Sr Sem limites 2 quando teve que levá-la a seu olho direito, que ardia bastante, para tentar cobrí-lo.

Em questão de milésimos, meu sangue ferveu. Ferveu como não fervia desde os tempos de colégio. Ferveu como não fervia até os segundos antes de uma briga muito feia começar, pra toda escola ver. Pela primeira vez, em 3 anos, eu senti o impulso legítimo de dar uma bela surra em alguém que já tenha me chamado de "Professor".

Explico minha reação, tanto recente como de outrora, quanto a tentar defender vítimas de mauricinhos: trata-se de uma relação de identificação imediata, tal qual Maria descreveu. Essa relação pode, também, ser denominada de "relação narcísica". Como sempre, "Freud explica". De modo simples, pode-se aplicar esse conceito a relações em que nasça um sentimento de familiaridade e reconhecimento de uma pessoa para outra. Isso acontece pois um dos lados se vê espelhado no segundo, o que gera forte empatia.

Caso eu não tenha sido suficientemente claro, o que eu quis dizer foi que sinto afeição por Paulo - e a escolha desse nome não foi por acaso, espero que isso tenha sido bem fácil de sacar - pelo simples motivo de ver a minha própria imagem projetada sobre ele. Paulo se sente mal recebido, solitário, caçoado sem motivo e muito retraído. Quem nunca se sentiu assim? Eu, antes de ter mínimas condições de revidar era, também, vítima de playboys as vezes com uma diferença absurda de idade, algo na casa de 4 anos. Culpa, talvez, do meu inconveniente crescimento descontrolado, que me fazia parecer anos à frente, mas que não me dava qualquer semblante intimidador. Era por esse motivo que eu, quando mais novo, assim que tive chance, passei a caçar mauricinhos que, como sempre, procuravam suas vítimas nos anos inferiores aos deles. Talvez, seja por esse motivo que Maria também se afeiçoe aos excluídos. E, talvez, seja Paulo o próximo a defender outros que passam pelo que ele passou, em um futuro ideal.

Arrependimentos?

Nenhum. Talvez de não ter socado tantos Maurícios quanto eu deveria, nos tempos de escola. Talvez dos momentos, que nunca deixam de voltar a nossa vida, em que fraquejamos e vemos a coragem se esvaindo pelas mãos.

Mais algum?

E de não ter feito dois Srs Sem limites chorarem de vergonha, quando tive a chance. De ter dado uma bronca que, olhando agora, foi mínima pelo que eles mereciam. De não ter pedido desculpas ao Paulo por tal fato ter acontecido mesmo na minha presença já que eu, pelo menos em TESE, deveria ser uma figura de autoridade. E de não ter reagido com mais veemência quando os Srs Sem limites ficaram, ao contrário de envergonhados, mas INDIGNADOS por ouvirem uma repreensão pelo que fizeram.


Eu, inocentemente, prefiro viver de futuro, por hoje. Prefiro imaginar que os maurícios do meu passado, que fugiram da minha alçada, tenham tomado suas merecidas lições. Também prefiro imaginar que esses caros senhores aprenderão, com o tempo, a descobrir seus limites. E, ainda, gostaria de imaginar que Paulo, ainda um dia, virará a mesa do jogo, e levantará a voz contra projetos de maurício que tentam sacanear alguém em sua frente.

É longa e ingrata essa estrada de esperanças, caminho dos inocentes.

Mas - por hoje - é por ela que caminho, até o alvorecer.

sábado, 23 de maio de 2009

A relação (de amor ou ódio) com o tempo.


Olá a todos!




Esse é o primeiro de vários contos/ crônicas que eu vou postar aqui, nesse espaço impróprio pra menores, maiores, letrados e, PRINCIPALMENTE, analfabetos. Tratam-se de meras ironias e metáforas sobre as pessoas, os ocorridos, os "devia ter ocorrido" e os "jamais devia ter acontecido" que fazem parte - imagino - não só da minha, mas da vida de todos nós. Qualquer semelhança com a vida real pode ser mera coincidência, como pode não ser. O que você pensou ter lido aqui, lembre-se, é única e exclusivamente produto da sua imaginação paranóica e maluca. Nunca culpa minha. Eu jamais escreveria - logo sobre você - aqui.

Esse não é espaço exclusivo de quem me conhece. Acho que as conclusões que tiramos sobre as personagens da nossa história servem a quaisquer pessoas, seja pra que elas se sintam espelhadas pela narrativa ou pra que percebam o quanto esse texto impróprio é distante da sua própria experiência vivida.

Hoje escrevo sobre quarto pessoas e suas respectivas relações com o tempo. Se essas pessoas existem ou não, não digo. Não digo que sejam apenas homens, como também não digo se elas estão ligadas umas as outras de alguma forma. Daí, óbvio, você já entendeu a lógica: elas existem e, pior, se conhecem e não são apenas homens, tem meninas na jogada. Não que eles sejam exatamente como vou escrever, mas me baseio em cada um deles pra escrever o que se segue.

As quatro pessoas são: o inocente; o escravo; o maluco e o hipócrita.



  1. O inocente sempre faz planos pro futuro. Diz que vai entrar na academia, que vai fazer uma viagem, que vai se tornar uma pessoa melhor. Tudo isso ainda vai acontecer, no futuro. O inocente tem uma imaginação fértil. Ele faz planos, confabula consigo mesmo, sonha acordado. Ele não raramente se pega fantasiando encontrar uma lâmpada mágica, da qual sairia um gênio, perguntaria quais seriam seus três desejos, e ele então lhe responderia: "Quero ser bonito, rico e feliz!". O inocente vive do futuro. Ele se alimenta, ao longo do tempo, de suas esperanças e sonhos - sem nunca tentar realizá-los. E, por isso, ele fica no mesmo lugar. Esse mesmo tempo, que passa sem parar, sempre se lembra de perguntar pelo inocente. A resposta é a mesma: "tá lá, naquele lugar de sempre".


  2. O escravo, como o nome sugere, é escravo do tempo. Ele está acorrentado ao passado. Não existe futuro para o escravo. Sua imaginação vive visitando o que já passou e acabou presa a isso. Ao invés de pensar no que vai fazer no futuro, o escravo sabe que seus problemas o seguirão, não importa onde ele vá. Aliás, o escravo já conhece seu futuro. Seu mundo todo é uma repetição de algo que já aconteceu antes. Quando uma nova mágoa surge, ele simplesmente diz: "Ah eh. Já me aconteceu antes. Foi igual daquela outra vez". É fácil identificar quando alguém adota a postura de escravo. Você já ouviu alguém próximo - talvez até você - dizendo: "Ah, pois é. Eles/ elas são todos(as) iguais". Cuidado! Isso é coisa de escravo. O escravo já não espera mais pelo príncipe encantado, como o faz o inocente. Ele já sofreu demais uma vez e já entendeu que todas as suas relações serão iguais. E se não forem, ele as fará ser, pra mostrar que tem razão.


  3. O maluco, por sua vez, ignora seu passado. Pra ele, são histórias divertidas sobre uma vida passada a serem contadas em um bar. E fora dele, já que ele as vive contando sóbrio. Pro maluco, tudo não passa de uma piada. Ele gosta de ver o circo pegar fogo, pra que tudo vire uma história divertida a ser contada logo depois. O maluco também não consegue mais fazer planos pro futuro. Ele está preso ao presente, apenas esperando a próxima anedota. Sem fazer planos, ele não consegue se prender a nada que possa ter futuro. Ao fazer piada de si mesmo e do que se passou, ele se esquece de quem ele é. Enfim, acaba perdendo a razão. Ele não faz planos, diz que o que passou passou e assim vai vivendo, como um maluco, sem esperanças. Se você disser o que eu escrevi pra ele, é claro, o maluco vai ficar negar, como todo bom louco nega sua loucura. Mas, é como dizem por ai: "melhor não contrariar".


  4. O hipócrita, deixado por último, se sente superior aos outros três. Ele já sofreu, claro. Já traíram sua confiança, óbvio. Mas ele seguiu em frente e descobriu que sua vida está segura, em perfeitas condições. Ele faz, inclusive, piada sobre seu passado. Ele aprendeu a planejar e a concretizar. Ele parece seguir junto ao tempo. Não fica nem atrás, nem na frente. Mas, como o nome sugere, o hipócrita não passa de um cretino. Um cretino que acredita nas próprias mentiras. Ele aprendeu a fingir que não está preso ao passado e a sonhar tão baixo que, assim, fica fácil concretizar. Na verdade, o hipócrita é o escravo que busca a liberdade pela mentira. Ele teme a verdadeira mudança e sempre fez de tudo para regular sua vida como fazemos a um relógio. Mas ele descobre, tarde demais, que agora está preso ao próprio "tic & tac", e anseia liberdade de sua criação. O hipócrita, na verdade, não esqueceu. Isso faz dele um escravo. Ele também faz planos que nunca vai concretizar, como um inocente. Mas, mais do que todos, ele acredita nas próprias mentiras. Isso faz dele um grande maluco, dentre todos os malucos.

Com qual você mais se identifica?


Tomara que nenhum dos quatro venha me perguntar: "Ow....aquilo lá é sobre mim?"


Eu confesso, pra quem acertar.